Ludwig van BEETHOVEN
Poucos nomes são tão emblemáticos, poucos músicos tiveram suas biografias tão romanceadas, poucas figuras têm sua importância tão unicamente afirmada quanto a do alemão Ludwig van Beethoven.
Posicionar tal personalidade artística no campo das rotulações historiográficas e da cronologia é, por isso mesmo, tarefa forçada. Há quem considere Beethoven o último dos clássicos. Há, por outro lado, quem o considere o primeiro dos românticos. Assim como Bach, Beethoven é uma grande testemunha na fronteira de duas eras. Quaisquer considerações qualitativas postas à parte, porém, o papel histórico de Beethoven foi bem mais considerável: sua figura insubmissa – artística e socialmente – consolida uma subversão das relações entre a música e a sociedade. Seria ingênuo atribuir tão somente à personalidade individual de Beethoven essa postura revolucionária: o jovem músico contava dezenove anos quando eclode a Revolução Francesa. Os ideais de democracia e de liberdade preconizados pela mentalidade revolucionária fazem eco na personalidade insubmissa e subversiva de Beethoven; essa pré-disposição irrompe na sua obra, que não exprime idéias revolucionárias, mas é, ela mesma, um ato de revolução.
Talvez esteja nisso uma postura de fundamento romântico face à arte: a estética de Beethoven não pretende como via de regra romper com a tradição, mas traz o sentimento de que o artista tem uma missão, uma necessidade de exprimir uma ideologia. Ele se quer testemunha de seu tempo e da própria humanidade. Já desde as suas primeiras obras esse posicionamento faz-se notar, a despeito da célebre (mas frágil) tripartição de suas fases criadoras.
Na terceira fase, porém, essa postura aparece com maior nitidez e com um grau de abstração que denota um posicionamento ideológico deliberadamente assumido, talvez determinado, em grande parte, pela surdez progressiva que o acomete ainda jovem e que se transforma em surdez total bem antes do final de sua vida. Exemplo maior disso é sem dúvida o procedimento inovador e peculiar empregado na Nona Sinfonia, op. 125: o uso das vozes humanas. O emprego dessas vozes (coro e solistas) e do poema de Schiller (1759 – 1805) são ousadias que vão para muito além da mera negação dos procedimentos clássicos de composição sinfônica. Beethoven faz uso de um e de outro, na Sinfonia op. 125, não como veículo de expressão de idéias poéticas, mas como contribuição para a realização de uma idéia musical.
Costuma-se aludir a dados biográficos quase anedóticos desse grande artista para se tentar “explicar” e legitimar outros tantos aspectos de sua obra: a origem humilde e a infância atribulada por um pai alcóolatra, que o queria transformar em um segundo Mozart; os seus insucessos amorosos; a sua personalidade explosiva e temperamental; a surdez. São dados importantes, por certo, mas tornam-se menores se colocados face a face com a grandeza e a importância de sua obra, que hoje é um dos monumentos da Cultura Ocidental.
Desses e de outros aspectos de sua biografia, talvez a sua surdez, à parte a tragédia pessoal, tenha, ela sim, contribuído para uma diferenciação estética mais pronunciada de sua obra. Na última fase, em que a surdez já é total, nota-se uma ruptura maior com as formas e os procedimentos clássicos, que Beethoven transcende, como procuramos demonstrar acima. Até onde isso possa haver, sua linguagem se torna mais abstrata e dessa fase nascem obras por vezes de proporções monumentais: a Missa Solene, as cinco últimas sonatas para piano, os seis últimos quartetos de cordas, as Variações Diabelli e, exemplo máximo, a Nona Sinfonia, op. 125.
Poucas obras de Beethoven tiveram gênese tão trabalhosa quanto a última das nove sinfonias. Ao que parece, a idéia de pôr música na Ode à Alegria de Schiller já aparece em 1792, poucos anos após o grande poeta romântico ter publicado seus versos. Em 1807 Beethoven concebe a Fantasia op. 80 para piano, coro e orquestra. Aspectos revelados nessa obra aparecem como uma espécie de ensaio para procedimentos que serão utilizados na Nona. Em 1823 Beethoven já havia composto os três primeiros movimentos da sinfonia, e ao final desse mesmo ano ganha corpo a idéia de concluí-la com o uso de vozes humanas e o emprego do poema de Schiller.
O uso das vozes e as citações dos movimentos anteriores, dentre outras “ousadias” estilísticas, são procedimentos que ganharam significado e importância especiais na música instrumental, na música sinfônica e na música dramática do século XIX, não exatamente na geração que sucede a Beethoven, mas numa geração posterior, da qual participam Mahler, Franck, Bruckner e o próprio Wagner.
Sem o isolamento do silêncio exterior, porém, Beethoven talvez não chegasse a atingir tal densidade de pensamento musical. Como escreverá mais tarde Victor Hugo: “Esse surdo ouvia o infinito”.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.