No quinto capítulo dos nossos sábados Fora de Série, Mozart é acompanhado pela música de seu contemporâneo Domenico Cimarosa e de seu famigerado rival cinematográfico Antonio Salieri.
por Moacyr Laterza Filho *
Desde Amadeus, aquela deliciosa fita de Milos Forman, lançada em 1984, baseada na peça homônima de Peter Schaffer, Salieri entrou para o senso comum como o grande vilão da história da música. É bem que se diga, porém, que a personagem de Schaffer não corresponde à figura histórica a que ela remete. Salieri foi de importância inegável, tanto como compositor quanto como mestre. Basta dizer que ele teve ascendência direta sobre a formação de Beethoven e, mais tarde, de Liszt. Seu nome foi eclipsado pela importância crucial, estética e histórica que tiveram os três integrantes da Primeira Escola de Viena.
Entre Mozart e Salieri, quaisquer rivalidades não ultrapassaram os limites do saudável ou da cordialidade. Depreende-se, inclusive, da correspondência de Mozart, que este prezava muito as opiniões de Salieri, que, por sua vez, tinha grande apreço e admiração pela obra de Mozart.
O estilo de Salieri, no entanto, é um pouco diferente do estilo de seus muitos compatriotas que moravam, então, em Viena: sua linguagem o aproxima muito mais da tradição germânica (como a de Gluck), que da italiana. Compositor dramático por excelência, deixou uma obra pródiga: são várias dezenas de óperas, um sem número de obras sacras, alguma música de câmara e várias obras sinfônicas, dentre as quais seis concertos e duas sinfonias completas: “La Veneziana” e “Il giorno onomastico”. Embora o nome seja pomposo, seu significado é bem simples: Salieri a compôs para comemorar seu próprio aniversário. Estruturada em quatro movimentos, já à maneira da sinfonia clássica, essa obra apresenta citações de outras obras suas: as aberturas de La Scuola de’ Gelosi e de La Partenza Inaspettata. Ao ouvinte habituado a Haydn e Mozart, essa obra há de ser a grata descoberta de um Classicismo já sólido e elegante, mas ainda não centrado em si mesmo, e mostra o ambiente musical vivo, pulsante e rico em que cresceu a Primeira Escola de Viena.
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Igualmente pródiga é a obra de Domenico Cimarosa: são cerca de setenta óperas, várias obras sacras, trinta e duas sonatas para teclado, em um movimento, à maneira de Domenico Scarlatti. Tendo construído uma carreira sólida, em 1791 é nomeado Mestre de Capela de Leopoldo II, em Viena, sucedendo Salieri. Seu estilo, porém, é inegavelmente italiano. Sua linguagem dramática assinala, com Pergolesi, Galuppi e sobretudo Mozart, o apogeu de uma tradição musical que veria em Rossini o seu primeiro herdeiro.
No entanto, o concerto para oboé é uma obra moderna: em 1949 Arthur Benjamin transcreveu, para oboé e orquestra de cordas, quatro sonatas para teclado, compostas entre 1787 e 1791, transformando essa colagem em uma única obra. As sonatas de Cimarosa transcritas são (em ordem numérica, não como aparecem no concerto) as de número 23, 24, 29 e 31. É bom lembrar que esse sistema de colagens, apropriações e transcrições não era estranho ao espírito e à prática dos séculos XVII e XVIII. A despeito da intervenção moderna, essa obra mostra o caráter vocal e dramático desse contemporâneo de Mozart, com quem compartilha a mesma tradição.
* Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.
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