Schoenberg em brilhante interpretação da Orquestra de Câmara Norueguesa
| 22 Maio 2015
Na busca pela expansão do conteúdo espiritual e emocional, Beethoven criou um novo paradigma sinfônico
por PAULO SÉRGIO MALHEIROS DOS SANTOS *
As sinfonias de Beethoven figuram hoje entre as obras mais consagradas pelo público de concertos. Entretanto, a maioria dos ouvintes contemporâneos do compositor reagiu com assombro e incompreensão às suas inovações — as primeiras críticas julgaram-nas intermináveis e fatigantes! De fato, essas sinfonias, concebidas em grandes dimensões, exigiam do público uma concentração sem precedentes. As nove sinfonias só se impuseram no repertório a partir de meados do século XIX, até ocuparem definitivamente um espaço ímpar no cânone da música sinfônica. Elas iluminaram as realizações anteriores de Haydn e Mozart como limites da perfeição clássica e, transcendendo corajosamente tais modelos, criaram nova referência musical, com novos padrões formais e inusitado poder emocional.
De maneira geral, Beethoven não alterou substancialmente a forma básica do gênero; apenas a Sexta Sinfonia (com seus títulos descritivos) e a Nona (com elementos de uma verdadeira cantata) diferem significativamente do modelo de Haydn. Planejadas para o grande público, as sinfonias não eram obras tão adequadas à experimentação formal quanto os gêneros mais intimistas das sonatas para piano e dos quartetos de cordas, em que o compositor exercitou mais largamente sua liberdade em todos os parâmetros da composição. Quanto ao formato da orquestra, por exemplo, ele manteve o estabelecido pelas últimas sinfonias de Haydn. Excepcionalmente, Beethoven usa trombones, como nas Sinfonias números 5, 6 e 7; na Eroica, acrescentou uma trompa; no final da Quinta emprega o flautim e o contrafagote; na Nona, eleva para quatro o número de trompas e amplia a percussão com o uso da então chamada música turca – triângulo, pratos e bumbo, somados aos dois tímpanos habituais. O pensamento orquestral de Beethoven excedeu os recursos dos instrumentos da época e sofreu desvantagens, por exemplo, no emprego das trompas e dos trompetes. Ao contrário, seu uso do fagote e dos tímpanos mostrou-se particularmente original. O tratamento beethoveniano dos sopros, considerado excessivo à época, causou espanto – alguns críticos o condenavam pela inclusão de uma banda no domínio orquestral.
A grande novidade orquestral de Beethoven, sobretudo a partir da Terceira Sinfonia, constitui-se no uso de maciços blocos sonoros, realizados através da separação dos timbres. Movimentando-os, o compositor manipula com precisão seus ataques, a densidade, a potência, os contrastes entre eles, ciente de sua eficácia sobre os ouvintes.
Foi principalmente na busca da expansão do conteúdo espiritual e emocional de suas obras que Beethoven ampliou a arquitetura formal da sinfonia. A própria natureza de seu pensamento composicional tornou quase inevitável sua excelência no gênero, permitindo-lhe explorar ao máximo as possibilidades expressivas da música puramente instrumental. E é interessante observar que, sob esse aspecto, o talento beethoveniano diferia radicalmente das características da personalidade de seu ídolo Mozart, autor eminentemente teatral e vocal em qualquer gênero que abordasse. O músico de Bonn, em pleno século XVIII, imbuído de um conceito já romântico, empenhou-se em demonstrar que as formas puramente instrumentais seriam capazes de exprimir ideais e sentimentos profundos.
Quanto ao número de movimentos, Beethoven seguiu o modelo das sinfonias londrinas de Haydn (apenas a Pastoral tem cinco movimentos, com os últimos três encadeados sem interrupção). Outra herança haydniana são os prelúdios lentos, que, utilizados anteriormente em sonatas para piano do próprio Beethoven, iniciam as Sinfonias números 1, 2, 4 e 7. A Terceira usa apenas dois acordes introdutórios. As Sinfonias 5 e 6 não têm introdução e a Nona se inicia com dezesseis compassos que preparam nebulosamente a súbita explosão da primeira ideia.
Os primeiros movimentos das sinfonias de Beethoven estão escritos na forma de sonata clássica (com exceção da Nona, que apresenta um discurso em que a exposição dos temas e o desenvolvimento se apresentam em conjunto). Nesses primeiros movimentos, o pensamento instrumental do compositor interfere principalmente na articulação das duas ideias constituintes da forma. Haydn frequentemente os relacionava, derivando o segundo do primeiro. Beethoven, ao contrário, valorizou a diferenciação entre o caráter dos dois temas principais pelo contraste rítmico, instrumental e pela distância das relações tonais entre eles. Explorando o conflito das ideias antagônicas contidas em dois temas opostos, o compositor transforma seus desenvolvimentos em um processo dialético de grande tensão. Os movimentos tornam-se assim necessariamente longos – a Eroica é muito mais longa e mais complexa do que qualquer sinfonia composta antes dela, com o imenso primeiro movimento repleto de material temático e extraordinária amplitude tonal. No final de cada primeiro movimento, a Coda beethoveniana ganha proporções de um segundo desenvolvimento, ressaltando a última aparição do tema vitorioso com insistentes afirmações tonais (a Quinta, por exemplo, apresenta uma série bombástica de redundantes acordes de tônica).
Na sequência das várias seções dos outros andamentos, há uma lógica motriz que continuamente impulsiona a música, construindo a totalidade da obra como expressão completa e única. Essa coerência interna, perceptível em cada uma das sinfonias, desde a Primeira até a Nona, acentua-se ainda mais pela ligação direta entre alguns movimentos (os dois últimos da sinfonia 5 e os três últimos da 6).
Os movimentos lentos mantêm, nas sinfonias de Beethoven, o caráter essencialmente melódico, mas se adaptam formalmente a uma função bem determinada pelo contexto da obra – daí, portanto, serem tão diferenciados (ou mesmo suprimidos). A visionária e trágica Marcha fúnebre, Adagio assai da Terceira, talvez seja o movimento lento mais célebre de todas as sinfonias. Na Quinta, o Andante con moto é um conjunto de variações ligadas por misteriosas passagens modulantes. A “Cena às margens do riacho”, Andante molto mosso da Pastoral, abre espaço a algumas intenções descritivas e intervenções imitativas (o próprio Beethoven menciona na partitura o canto dos pássaros: a flauta se faz de rouxinol, o oboé imita a codorniz e o clarinete, o cuco). As duas sinfonias seguintes não possuem movimentos lentos: o Allegretto da Sétima, com caráter de marcha, mantém em primeiro plano o interesse rítmico que domina toda a sinfonia. O Allegretto scherzando da Oitava, deliciosamente divertido, traz um acompanhamento mecânico para a saltitante melodia, provável homenagem a Mälzel, inventor do metrônomo. Finalmente, o Adagio molto e cantabile, terceiro movimento da Nona, tem uma forma comum aos últimos quartetos do compositor – consiste em um lied de profundidade e intensidade inigualáveis, formado pela alternância de dois temas, suas variações e interlúdios.
O movimento de dança dentro da sinfonia sofre uma sensível modificação em Beethoven. O inevitável Minueto das antigas sinfonias lhe parecia socialmente obsoleto e bem acanhado musicalmente. O compositor o substitui então pelo Scherzo, mantendo a mesma estrutura, ou seja, com o Trio intermediário e o retorno da capo, mas com conteúdo diferente – agitado, fantástico, impetuoso, livre – e de dimensões maiores. Beethoven usou pouco o termo scherzo, mesmo para definir movimentos que claramente são scherzi. Nas sinfonias usou-o apenas na Segunda e na Terceira, normalmente limitando-se à indicação do tempo.
O último movimento adquire, nas sinfonias de Beethoven, importância notável, como ponto culminante da construção musical. Com exceção dos finais da Primeira e da Quarta sinfonias (que se inscrevem na tradição vienense) e o da Sexta (com seus títulos descritivos), os restantes possuem uma tensão e um clímax incontestáveis.
Em 1824, em Viena, com a estreia da Nona Sinfonia, Beethoven assinalava para o grande público mais uma transformação em sua obra, após solitário e prolongado silêncio de quase uma década – comentava-se que, surdo e mergulhado em problemas pessoais, ele se tornara incapaz de compor. Durante o concerto, realizado no dia 7 de maio, o compositor ficou no palco, seguindo a partitura, enquanto o maestro Ignaz Umlauf regia a orquestra. Ao final da sinfonia, Beethoven permaneceu imóvel; a cantora Caroline Unger tomou-o pelo braço e virou-o de frente para o público, para que ele pudesse ver com que entusiasmo era aplaudido.
Musicar o poema de Schiller era um antigo sonho do compositor. A leitura das Cartas sobre a educação estética do homem fora decisiva em sua reflexão sobre a função pública e o poder instrutivo da Arte para a sociedade e os indivíduos, conduzindo-os a níveis mais elevados de comportamento e convivência.
Depois do sucesso da estreia da Nona Sinfonia – com sua conclamação urgente e circunstancial pela fraternidade entre os homens –, o compositor, do alto de sua glória, dispôs-se ainda a mudar seus códigos. Retorna às técnicas contrapontísticas bachianas, estuda a música renascentista e a harmonia modal. Serenamente, desvencilhava-se da tendência ao retórico, libertava-se dos efeitos fáceis e buscava sua voz mais íntima e atemporal. Derradeiras obras-primas de Beethoven, os últimos quartetos e sonatas para piano pareceram incompreensíveis para seus contemporâneos e só a modernidade revelou-lhes toda a grandeza.
Após Beethoven, os sinfonistas românticos se viram diante de um desafio. Em uma direção, Mendelssohn, Schumann e Brahms adaptaram a sinfonia à expressão mais intimista do Romantismo – reduzindo as proporções dos movimentos intermediários, tomaram como modelo principalmente a Quarta e a Oitava. Em outra vertente, Berlioz e Liszt, muito influenciados pela Sexta, adotaram os programas extramusicais para os poemas sinfônicos. A última grande sinfonia de Schubert, escrita sob o impacto da Nona de Beethoven, aponta para o futuro e possui atributos comuns às obras posteriores de César Franck (1822-1890), Anton Bruckner (1824-1896) e Gustav Mahler (1860-1911), valorizando a tendência para a unidade cíclica e disposição formal em amplos espaços harmônicos. Mesmo para os compositores contemporâneos, que adotam processos diametralmente opostos aos de Beethoven, suas nove sinfonias permanecem imprescindíveis.
* Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.
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