A verdadeira fruição musical dos "Noturnos" de Chopin
| 6 ago 2020
Rostropovich interpreta Shostakovich
Para se criar algo que exale liberdade e qualidade de expressão é necessário estarmos em clima de liberdade? É possível para um artista ser criativo e relevante quando ele ou ela vive num ambiente político de repressão?
Talvez o período mais rico e produtivo da música popular brasileira, por exemplo, tenha acontecido durante as décadas de 1960 e 1970, durante o auge da ditadura, com os saudosos festivas da TV Record. Foi justamente dentro de um clima sufocante de censura imposta pelos militares, do AI-5 e controle dos meios de comunicação pelo governo da época que joias da música brasileira, lapidadas com inteligência, talento, criatividade e qualidade, foram escritas e passaram a ser emblemáticas para a época, com repercussão artística que se manifesta até os dias de hoje. Quantas canções escritas nos últimos cinquenta anos têm a abrangência de uma Roda-Viva, de uma Ponteio e, principalmente, de uma Pra não dizer que não falei das flores?
Guardadas as proporções, em quase todos os sentidos, assim se revela a obra de Shostakovich, concebida e divulgada durante algumas das décadas mais intensas e dolorosas da história da humanidade: a Segunda Grande Guerra e o regime stalinista que se instalou e determinou o futuro político do mundo até recentemente.
Tachado de “decadente” por Stalin, ao buscar responder às linhas estéticas em vigor na Europa da primeira metade do século XX, e consciente do que isso significava para a viabilidade artística de seu trabalho e para a sua própria sobrevivência, Shostakovich se utilizou exatamente do poder subliminar da música para aquiescer às demandas do ditador e, ao mesmo tempo, ou em contraponto, criticá-lo de forma sutil, inteligente e genial, sem que Stalin (e a grande maioria do público da época) percebessem isso.
Se, de um lado, algumas de suas sinfonias, concertos, música de câmara, demonstram “fidelidade” ao regime soviético e às “regras” estéticas impostas pelo regime, outras obras importantes retratam essa aparente subserviência às imposições Stalinistas, mas, ao mesmo tempo, denotam um profundo desprezo e crítica à linha política vigente na Rússia de então.
Sua Quinta Sinfonia foi uma das primeiras obras do compositor a alcançar reconhecimento e admiração internacional, embora, fora da União Soviética, ela fosse vista por alguns como a obra de um artista de talento fazendo concessões vergonhosas ao regime, ao invés de encará-lo com ousadia e determinação. Eu mesmo, nos meus anos de formação, pensava dessa maneira, pois, à superfície, sua música tem essa audição fácil, quase debochada, circense, conservadora no pior sentido. Mas foi só depois de conviver e aprender com o grande violoncelista e regente russo Mstislav Rostropovich que comecei a entender as entrelinhas, tão marcantes na obra do compositor.
Lembro-me do primeiro ensaio do primeiro movimento desta Sinfonia, que assisti em Washington, quando, após alguns compassos iniciais, Rostropovich parou a orquestra e disse: “Não toquem o que está escrito somente. Pensem em seus piores inimigos e toquem agora como se vocês pudessem estrangulá-los!”. A partir dessa visão, toda a Sinfonia toma outro vulto e importância. Ela não é a exaltação do regime soviético, como imaginada por Stalin, mas sim a condenação de mais uma figura política que representou o atraso e o desrespeito ao próximo.
A gravação recomendada não é a melhor em termos sonoros, imagem ou mesmo execução, mas é o único vídeo com o único regente que teve a oportunidade de conviver com Shostakovich e com Stalin, e que conhecia a obra do compositor como ninguém: Mstislav Rostropovich, aqui com a Orquestra da Rádio e TV Espanhola.
A imagem que ilustra este post é uma foto pertencente à Deutsche Fotothek, 1950.
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