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| 9 abr 2018
No dia 14 de abril, nossa Orquestra faz uma "petit voyage" pela música francesa através das obras de Poulenc, Gounod, Debussy e Satie. É sobre elas que o pianista Paulo Sérgio Malheiros escreve.
por Paulo Sérgio Malheiros dos Santos *
O cenário musical francês no início do século XIX foi inteiramente dominado pelo teatro lírico, quando o gosto burguês pelo melodrama conformara-se com um romantismo falsificado para entretenimento. Nesse contexto, pouco propício à música instrumental, a obra de Berlioz foi um exemplo isolado. A música orquestral e de câmara francesas, outrora magníficas, só se reafirmaram, progressivamente, a partir da segunda metade do século. Três grandes regentes associaram-se a essa renovação: Jules Pasdeloup, Édouard Colonne e Charles Lamoureux inauguraram célebres séries de concertos, divulgando, ao lado do repertório clássico, autores contemporâneos.
Paralelamente, surgiram importantes grupos de câmara, com destaque para a consolidação da tradição nacional de sopros, instrumentos então beneficiados pelas recentes inovações de Adolphe Sax (que aperfeiçoou o clarinete baixo e inventou o saxofone) e de Théobald Boehm (que deu à flauta sua configuração atual). Professor do Conservatório, o célebre flautista Paul Taffanel, criador da Societé de Musique de Chambre pour Instruments à Vent, foi o destinatário da Petite Symphonie de Gounod. A estreia se deu na Sala Pleyel no dia 30 de abril de 1885. A obra apresenta a instrumentação padrão do octeto de sopros mozartiano acrescida do papel de destaque da flauta e exemplifica as melhores qualidades de seu compositor. Gounod, músico de formação abrangente, ganhador do Prêmio de Roma, estudou na Itália, dedicando-se especialmente à arte de Palestrina. Amigo de Mendelssohn, familiarizou-se com Bach e os clássicos vienenses. Em sua obra, porém, percebe-se a fidelidade à tradição francesa, manifesta na pureza das melodias, na clareza e elegância de uma música avessa à exuberância dos efeitos fáceis. Fauré e Ravel consideravam-se seus herdeiros.
Fin de siècle… Esquecidas as cicatrizes da guerra de 1870, Paris retoma a visibilidade de maior vitrina mundial das artes. Em 1889, a Exposição Universal apresenta aos europeus a riqueza da música de países distantes. O Romantismo chegara aos limites de suas possibilidades e seria impossível ultrapassá-las sem implodi-las – simbolismo, impressionismo, outros “ismos”, a belle époque e as vanguardas iniciam o século XX.
Na construção dessa modernidade musical, Claude Debussy ocupa um lugar privilegiado. Seu rompimento com o passado revela um pensamento sonoro totalmente novo que alterou definitivamente a escuta musical. Manteve-se em constante renovação. Em 1913, cativado pelas ilustrações do livro infantil de André Hellé, Debussy terminou a partitura para piano de La boîte à joujoux, visando a um balé de marionetes. Humor e ternura nortearam essa composição, dedicada à sua filha Chouchou – há citações de canções infantis e de óperas de Gounod e de Bizet; a chegada do general inglês é anunciada com o cakewalk Le petit nègre; e o tema da Flor se reduz a uma pausa de semínima – com fermata e indicação de pianissimo decrescente!
A guerra inviabilizou a apresentação dessa versão pianística. Debussy então começou a orquestrá-la, mas a doença e a morte interromperam o projeto. A orquestração foi completada por seu discípulo André Caplet, e a estreia do balé só aconteceu a 10 de dezembro de 1919, sob a direção de Désiré–Émile Inghelbrecht.
Em 1891, Debussy conheceu Erik Satie, pianista do cabaré L’Auberge du Clou. Inconformista, com agudo senso de ironia, cultivando excentricidades e contradições, alvo de anedotas, Satie tornar-se-ia personagem querido das vanguardas. Sua obra (e seus títulos bizarros) é a de um grande inventor cujos processos serão retomados por outros compositores, de Debussy a John Cage. Debussy orquestrou duas Gymnopédies cujo charme reside no desvio sistemático entre a harmonia do acompanhamento e o sentimento tonal estabelecido pela melodia.
Caçula do Grupo dos Seis, Francis Poulenc dedicara a Satie, em 1917, uma Rapsodie Nègre que causou escândalo no Conservatório, para grande satisfação do destinatário. Simplicidade satienista marca o contraponto das três sonatas para sopros que Poulenc escreveu nos anos 1920. A segunda – para trompa, trompete e trombone – estreou em 1923, no Théâtre des Champs-Elysées. O concerto foi inteiramente dedicado a Satie e Poulenc.
* Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.
[Ilustra este post um recorte da pintura Hush! (The Concert), de cerca de 1875, do pintor impressionista francês James Tissot.]
REFERÊNCIAS
Para ouvir
Álbum Charles Gounod / Vincent d’Indy – Petite Symphonie; Chansons et Danses | Octuor à Vent Maurice Bourgue (Calliope – 1975)
CD Poulenc – Complete Chamber Music – vol. 3 (Naxos 8553613 – 2000)
CD Debussy – La Boîte à Joujoux; Printemps | L’Orchestre de la Suisse Romande – Ernest Ansermet, regente (London Records – 1995)
CD Satie – Orchestral Works – Parade; Trois Gymnopédies; Mercure; Relâche | Orchestre Symphonique et Lyrique de Nancy – Jérôme Kaltenbach, regente (Naxos – 1999)
Para ler
François-René Tranchefort – Guia da Música Sinfônica (Nova Fronteira – 1990)
Renaud Machart – Poulenc – Solfèges (Seuil – 1995)
Jean Barraqué – Debussy – Solfèges (Seuil – 1977)
Anne Rey – Erik Satie (Martins Fontes – 1992)
Para assistir
Poulenc
Vladislav Lavrik, trompete – Stanislav Davydov, trompa – Arkady Starkov, trombone
Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=ssiKSlADGvA
Gounod
Orchestre Philharmonique de Radio France – Mikko Franck, regente
Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=htnvqI0bng0
Debussy
Orchestra UniMi – Alessandro Crudele, regente
Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=0XJx8M8jUXY&list=PLEGKOC7mvop-ooGRXEW2mSVK1L-Z2BfK_
Satie
American West Symphony – Joel Rosenberg, regente
Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=9j6IgBHoaRE
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