Salomé, op. 54: Dança dos sete véus

Richard STRAUSS

(1905)

Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 4 clarinetes, requinta, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 6 trompas, 4 trompetes, 4 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

 

“Sucessivamente Salomé (Dresden, 1905) e Elektra (Dresden, 1909) atingem um paroxismo musical e dramático: violência delirante, erotismo ardente, explosões tonitruantes de uma orquestra de fogo e sangue. Nunca se vira ou ouvira nada semelhante na ópera. A escrita musical escapa a todos os sistemas, resiste a qualquer qualificação categorial, não tem modelo em nenhum outro lugar. Mas a concepção dramática da harmonia e o expressionismo dilacerante que trata a voz de maneira sobre-humana exerceram influência sobre uma parte do teatro musical de nosso tempo. Todavia, sonoridades inauditas em sua simplicidade, como as que cercam o último canto sublime de Salomé, nunca mais serão imitadas” (Roland de Candé, História Universal da Música).

 

Dessa forma, em nada isenta de juízos de valor, Roland de Candé justifica, em certo sentido, inserir-se o nome de Richard Strauss entre os inauguradores do século XX, ao invés de entre os herdeiros do Romantismo. No entanto, há que se considerar uma coisa sem detrimento de outra. Strauss nunca abandonou de fato o sistema tonal, mas soube transcendê-lo. Entre suas fontes estão Brahms, Wagner e Liszt, mas ele nunca é subserviente a seus modelos. Em sua pródiga e longa carreira produtiva, Strauss toma o rumo de um expressionismo sinfônico bastante diferenciado daquele que a Segunda Escola de Viena adota e posiciona-se à margem de quaisquer correntes musicais declaradamente escolásticas ou revolucionárias. Foi com o Poema Sinfônico – proposta inovadora, formal e expressivamente, que a mentalidade musical romântica lança como alternativa para escapar, no universo sinfônico, aos modelos clássicos – que Strauss se desenvolveu e se consagrou internacionalmente como compositor.

 

Somente a partir dos quarenta anos Strauss dirige sua atividade ao teatro musical. Já maduro como artista criador e com domínio pleno da escrita sinfônica, ele se dá o direito de não observar estritamente as diretrizes fundamentais da tradição musical em que se insere e, assim, posiciona-se junto às grandes vanguardas da música de seu tempo.

 

Salomé foi um escândalo! Por isso (ou apesar disso), após sua estreia em Dresden, em menos de dois anos esteve em cartaz em pelo menos cinquenta teatros. Gustav Mahler não conseguiu a permissão necessária para realizá-la em Viena (somente a partir de 1918 essa cidade pôde ver em seus palcos a ópera montada). A despeito disso, a ópera da cidade austríaca de Graz a montou em 1906, sob a batuta do compositor, tendo na plateia nomes como Giacomo Puccini, Arnold Schoenberg, Alban Berg e Gustav Mahler. Na Inglaterra, a ópera esteve proibida até 1910.

 

Baseada em uma tradução alemã, por Hedwig Lachmann, da peça homônima de Oscar Wilde, que a escreveu originalmente em francês (o próprio Strauss elaborou, em 1930, uma versão alternativa da obra com texto em francês, baseado no original de Wilde), Salomé explicita, do argumento bíblico, um erotismo que, ali, se encontra apenas velado. Na Dança dos sete véus, por exemplo, a personagem-título da ópera realiza uma dança em que se despe lentamente em frente a Herodes até quedar-se nua. Marie Wittich, a cantora que estava a cargo do papel principal da estreia em 1905, recusou-se a realizá-la, tendo que ser substituída por uma dançarina.

 

Strauss explora em Salomé artifícios então muito modernos para a estruturação musical: o uso da bitonalidade, por exemplo. Ademais, o emprego, aqui, da dissonância, revela uma despreocupação com a causalidade e, com isso, um afastamento da tonalidade e uma aproximação das experiências mais arrojadas de seus contemporâneos, o que causou, em suas primeiras plateias, assombro e choque. A Dança dos sete véus, que recupera o episódio bíblico em que Salomé dança para Herodes e cujo desfecho é a decapitação de João Batista, é “pintada” musicalmente por Strauss com certos orientalismos que não fazem senão ambientar a cena em seu respectivo cenário.

 

É curioso e relevante o fato de que esse trecho orquestral da ópera somente foi concluído depois de o corpus da ópera ter sido elaborado: a Dança dos sete véus parece ter sido composta em agosto de 1905, ao passo que o restante da obra data aparentemente de junho do mesmo ano. Isso revela não apenas o impacto dramático que a cena tem no contexto da ópera, mas, sobretudo, a importância que Strauss lhe confere. Esse trecho orquestral se mostra, portanto, relativamente autônomo do ponto de vista musical e, assim, sua desvinculação do espetáculo cênico mostra-se não apenas legítima, mas importante, por si só.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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