La mer

Claude DEBUSSY

(1905)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 5 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, cordas.

 

É sempre tentador associar a música de Debussy a elementos descritivos. De fato, muitos dos títulos de suas obras podem perigosamente induzir o ouvinte e o estudioso a sucumbirem a esse caminho, fácil, mas equivocado, que tenta traçar uma relação entre sua música e esse grande movimento pictórico que foi o Impressionismo: Prélude à L’Après-Midi d’un Faune, Clair de Lune, Voiles, Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, dentre tantos outros, sempre tão poéticos. Há quem possa, nessa temerosa associação, procurar enxergar elementos musicais descritivos apenas sugeridos, trabalhados e estilizados em grau exponencial até que o som, em seu estado puro (se é que isso seja possível) – e sobrepujando a própria representação imagética – se torne tão essencial quanto a cor e a luz também se tornaram nas mãos de um Cézanne ou de um Monet. Trata-se, insistimos, de um caminho ao mesmo tempo fácil e, em muitos aspectos, equivocado, porque para o ouvinte habituado à causalidade do sistema tonal, com suas estruturas formais preconcebidas, urge encontrar referências que possam atribuir sentido ao novo e ao inesperado.

 

Este é sempre o caminho de Debussy. Em sua música, o ouvinte é privado de suas referências habituais e sua acuidade auditiva não é mais guiada por uma convergência causal objetiva. O ouvinte de Debussy (e este é um dos fatores que tornam sua música, até hoje, surpreendentemente atual) acaba por se ver necessariamente atrelado ao som, ou antes, às sonoridades que o levam a percursos que não são reconhecíveis de pronto, o que causa uma sensação de perplexidade extática, de déplacement que nunca deixa de ser fascinante, posto que a alguns possa causar insegurança.

 

O caminho das sugestões imagéticas em Debussy é, portanto, muito mais complexo do que a mera descrição. Ele rompe desde, pelo menos, os Noturnos (1899), com a perspectiva clássica de desenvolvimento e opta por uma espécie de justaposição de ideias (musicais) entre as quais se estabelecem outros tipos de relação que não a de causa e efeito. Formalmente, suas obras não são atreladas nem redutíveis a categorias preconcebidas e a sua matéria sonora é atomizada, o que gera uma espécie de fracionamento do som em potencialidades tímbricas que passam a ter valor em si mesmas. Assim, o material temático tem a liberdade de se dispersar, e a harmonia, livre de sua origem contrapontística, liga-se muito mais ao timbre que à funcionalidade causal (na qual a dissonância é necessariamente resolvida). O ritmo adquire uma aparência fluida, em que raramente se reconhecem as referências métricas.

 

Na linguagem de Debussy, portanto, a imagem não tem lugar para se constituir como descrição… Nem sequer como sugestão descritiva! Se pode haver alguma relação entre sua música e qualquer elemento figurativo ou pictórico, esta se dá muito mais no plano de sua “intuição criadora”(nas palavras de Jacques Maritain), que no da constituição da obra propriamente dita.

 

Entre 1904 e 1905 Debussy elabora ou conclui algumas de suas obras mais importantes: para piano, ele compõe L’isle joyeuse, Masques e o primeiro caderno das Images; para voz e piano, a segunda série das Fêtes Galantes e, para orquestra, La mer. No plano pessoal, porém, ele passa por um momento turbulento: em junho de 1904 abandona sua esposa Lily, com quem estava casado havia cinco anos, e passa a viver com a cantora Emma Bardac. Em razão disso, Lily tenta o suicídio em outubro. Foi um escândalo social. A despeito disso, Debussy e Emma Bardac continuam juntos, obtêm os respectivos divórcios e passam a habitar uma bela mansão na antiga Avenida Bois de Boulogne, em Paris. No outono de 1905 nasce a única filha do casal, Claude-Emma, a quem Debussy chamava carinhosamente Chouchou. Nesse mesmo outono é estreada La mer, cuja composição fora iniciada dois anos antes. A obra não foi bem recebida – nem tampouco as outras da mesma safra – talvez muito em função do escândalo de seu rompimento com Lily e de sua união com Emma Bardac.

 

No entanto, trata-se de obra fundamental na linguagem debussyana, e uma das mais significativas da música de nosso tempo. Estruturada em três seções (Desde a aurora ao meio-dia sobre o mar, Jogo de ondas e Diálogo entre o vento e o mar), nela se percebem com clareza as propostas estéticas revolucionárias de Debussy, a começar pelo trabalho com a estrutura formal, que escapa a quaisquer referências preestabelecidas. Ademais, nota-se, principalmente na segunda seção, esse trabalho de atomização do material sonoro que leva à valoração do timbre, permitindo a dispersão dos elementos temáticos em detrimento de um trabalho causal de desenvolvimento. Daí, talvez, o subtítulo dado por Debussy à obra: “Trois Esquisses Symphoniques pour Orchestre” (Três Esboços Sinfônicos para Orquestra). A Debussy não interessa mais a dureza da linguagem tonal ou dos preconceitos sonoros e musicais. Interessa-lhe muito mais a fluidez sempre cambiante que ele observa no mar e que ele transpõe para o plano sonoro, reinventando com aguda personalidade a Música e a linguagem musical. Se, para Pierre Boulez, o século XX se abre com o Prélude à L’Aprés-Midi d’un Faune, ousamos acrescer que ele se instala monumentalmente com La mer.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais e na Fundação de Educação Artística.

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