Gustav MAHLER
Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos, percussão, harpa, cordas.
Atividade camerística por excelência, a canção foi sempre cultivada nos círculos íntimos ou em salões mais ou menos restritos. Em sua concepção radical, ela nunca se quer espetacular, o que não quer dizer que não possa ter, muitas vezes, certo grau de sintética dramaticidade. O século XIX viu surgir seu maior cancionista, modelo fundamental para os que o sucederam. Franz Schubert explora o potencial dramático da canção de tal forma, que o instrumento acompanhador – o piano – adquire uma importância até então raramente concebida e um papel, por vezes, protagonista. A interação entre voz e piano, em Schubert, gera uma dialética, cuja síntese é a canção propriamente dita.
É nesse modelo schubertiano que se baseiam dois outros grandes cancionistas vienenses do final do século XIX: Hugo Wolf e Gustav Mahler. No entanto, se Wolf mantém a combinação piano e voz na maioria de suas canções, Mahler transfere o papel do acompanhador para o seu próprio instrumento: a orquestra sinfônica. Desse movimento nascem obras capitais: A Canção da Terra (Das Lied von der Erde), As Canções das Crianças Mortas (Kindertotenlieder) e as Canções de um andarilho (Lieder eines fahrenden Gesellen).
Assim como outras canções de Mahler, as Canções de um andarilho se baseiam em uma compilação de poemas e canções populares alemães feita por Achim von Arnim e Clemens Brentano intitulada Des Knaben Wunderhorn (A Trompa Maravilhosa de um Rapaz). Imbuído do espírito singelo e arcaizante desses textos, Mahler mesmo escreveu os textos das Canções de um andarilho.
Compostas sob a influência de uma desilusão amorosa, sobre elas Mahler escreve a seu amigo Fritz Löhr, em janeiro de 1885: “compus um ciclo de canções, seis, até agora, todas dedicadas a ela (…). As canções sugerem a imagem de um andarilho que, encontrando adversidades, põe-se a peregrinar em solidão pelo mundo”. Ao que tudo indica, “ela” era Johanne Richter, cantora da ópera de Kassel, com quem Mahler havia mantido um infeliz relacionamento amoroso. Dessas seis canções, apenas quatro foram publicadas em 1897, simultaneamente em duas versões: voz com acompanhamento de piano e voz e orquestra. Essa última versão é a que se comumente executa. Das duas canções que não foram publicadas, nunca mais se ouviu notícia.
Franz Schubert frequentemente usava melodias de suas canções como material temático para obras instrumentais suas: basta mencionar o quarteto de cordas em ré menor, baseado em A Morte e a Donzela (Der Tod und das Mädchen). Da mesma forma, Mahler utiliza materiais (não apenas melódicos) das Canções de um andarilho (explicitamente da segunda e quarta canções) como matéria-prima da sua Sinfonia nº 1 (“Titã”), concluída em 1888. Isso mostra não apenas o apreço que Mahler tinha por essas suas canções, mas a admiração, consciente ou não, que mantinha por Schubert. As Canções de um andarilho foram estreadas em 1896, em Berlim, pelo barítono holandês Anton Sistermans, acompanhado pela Orquestra Filarmônica de Berlim, sob a batuta do próprio Mahler.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.