As Sombras do Tempo

Henri DUTILLEUX

(1997)

Instrumentação: 2 piccolos, 4 flautas, 3 oboés, corne inglês, requinta, 2 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, celesta, cordas.

 

A música de Dutilleux frequentemente faz referências a obras literárias ou pictóricas que lhe servem de fonte poética, embora o compositor se declare avesso a qualquer vestígio de “programa descritivo” na tradição dos poemas sinfônicos do século XIX. Assim, ao dar o subtítulo de “A noite estrelada” para Timbres, Espaço, Movimento (1978), Dutilleux não tentou reproduzir sonoramente a pintura homônima de van Gogh, apenas prolongar suas impressões e ressonâncias oníricas. Outras fontes são literárias: no Concerto para violoncelo, Tout un monde lointain, o compositor inspirou-se em Les fleurs du Mal de Charles Baudelaire, fascinado pelo universo do poeta e seu conceito de evasão, a grande viagem à procura do desconhecido. O Concerto para violino, L’arbre des songes (1985), é uma reflexão sobre o tempo e a memória, musicalmente traduzida em um estudo da “percepção de estratos temporais múltiplos”, conceito elaborado pelo compositor após a leitura de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust.

 

A meditação sobre o tempo continua em As Sombras do Tempo. No primeiro movimento, As horas, ouve-se a mecânica marcação de uma pulsação. No trecho Memória das sombras, uma mensagem fica bem explicitada pela utilização do texto retirado de O Diário de Anne Frank. Assim, quando as vozes perguntam: “Por que nós? Por que a estrela?” –, o ouvinte bem sabe a que estrela/estigma elas se referem. E a música trabalha com um tempo que não deveria jamais ser esquecido. Segundo o próprio Dutilleux, a unidade da peça resulta de alusões “tanto a imagens atemporais quanto a acontecimentos passados, cuja lembrança, apesar das marcas do tempo, não cessam de me assombrar”. O último movimento recebe o título interrogativo Dominante bleue? e termina suspenso sobre a pulsação metronômica do tempo, recusando a facilidade harmônica de uma resolução.

 

Para Dutilleux, o processo criador pode transformar-se em um ritual, uma forma de cerimônia religiosa, pois implica uma epifania – quando uma determinada ideia se revela luminosa e, por algum segredo, se impõe sobre as outras. Assim, o artista convive com o sagrado, o mistério, a magia; prioriza a emoção e cultiva a curiosidade pelo inusitado. No plano técnico, Dutilleux valoriza o trabalho artesanal, com a preocupação de inserir o pensamento musical em uma estrutura bem definida (ainda que contrária a qualquer organização pré-fabricada). E ressalta a necessidade absoluta da escolha e da economia dos meios, sempre visando o que se pode chamar a Alegria do Som.

 

A grande sensibilidade harmônica, o gosto detalhista da orquestração e a busca de novos recursos expressivos fazem de Dutilleux um herdeiro direto da tradição de Berlioz, Dukas, Debussy e Ravel. Fruto de um trabalho persistente e de qualidade excepcional, sua música ocupa, tanto para a crítica mais tradicionalista como para as vanguardas, lugar privilegiado no cenário contemporâneo. Em 2005, aos 89 anos, Dutilleux recebeu o cobiçado prêmio Ernst von Siemens, pelo conjunto de sua obra.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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