Uma noite no Monte Calvo

Modest MUSSORGSKY

(1867)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

É em uma Rússia em ebulição pré-revolucionária que surge o Grupo dos Cinco: dois jovens oficiais (César Cui e Modest Mussorgsky), um aluno da Escola Naval (Rimsky-Korsakov), Balakirev (o único músico profissional) e um assistente de química da Academia de Medicina (Alexandre Borodin). Trabalhando sem cessar, o grupo fez a revolução antes mesmo de Lenin… Dos cinco, o mais revolucionário foi Modest Mussorgsky.

 

No entanto, costuma-se brincar maliciosamente que a obra orquestral mais importante de Mussorgsky foi escrita por Ravel. De fato, a orquestração que Ravel fez dos Quadros de uma Exposição, composta originalmente para piano, ajudou a projetar a música e o gênio de Mussorgsky para além das fronteiras russas. Não fora, ainda, o grande e cuidadoso empenho de Rimsky-Korsakov em resgatar, revisar e publicar a sua obra, após sua morte, a maior parte da música de Mussorgksy hoje estaria perdida.

 

Seu acervo parece um retrato de sua vida: desregrado, desorganizado, cheio de esboços não concluídos e, mesmo em manuscritos mais completos, diversas passagens problemáticas, em que não se consegue discernir direito o que é erro, omissão, desleixo ou inovação deliberada.

 

O zeloso e admirável trabalho de Rimsky-Korsakov, no entanto, deixou a posteridade em dúvida: até onde as suas interferências não estariam corrompendo o gênio do compositor, corrigindo e polindo o que, na sua opinião, seriam barbarismos e equívocos, mas que na verdade poderiam ser investidas ousadas e insuspeitas? Nunca se saberá ao certo.

 

É das obras mais completas e acabadas de Mussorgsky que vem esse questionamento: suas mais de sessenta canções, produzidas ao longo de toda a sua vida, mostram procedimentos muito pessoais, contrastes desconcertantes, melodias angulosas e grandes rupturas rítmicas e harmônicas, que põem em cheque o próprio sistema tonal.

 

A despeito disso tudo, algumas obras suas entraram definitivamente para o patrimônio musical do Ocidente: além das canções e dos Quadros de uma exposição, a ópera Boris Godunov é decisiva. Sua música orquestral compõe-se de pouco menos de dez títulos. Deles, a Uma noite no Monte Calvo, na versão de Rimsky-Korsakov, é a obra mais conhecida e a mais importante. Trata-se da versão que Rimksy-Korsakov fez e publicou, em 1886, de uma obra original de Mussorgsky intitulada Noite de São João no Monte Calvo, que Balakirev recusara-se a apresentar e nunca foi executada durante a vida do autor. Essa versão original só foi publicada em 1968 e é ela que será ouvida nesta noite.

 

Seu manuscrito foi descoberto na década de 1920, na Biblioteca do Conservatório de Leningrado. A música encerrada nessa partitura faz despertar, mais uma vez, as dúvidas sobre o bem-intencionado trabalho que Rimsky-Korsakov fez ao revisar as obras do amigo: as ousadias que ela apresenta – que valeram a Mussorgsky severas críticas de Balakirev – não aparentam ser, aos olhos e ouvidos de hoje, desleixo ou inépcia, mas ensaios visionários de caminhos que, pouco mais tarde, a música do Ocidente tomaria.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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