Maurice RAVEL
Ravel tem seu nome indissoluvelmente ligado à dança. Ela aparece, na obra do compositor, a evocar os mais diversos sentimentos e estados de espírito. Pavane pour une infante défunte; Menuet Antique; assim como a Forlane, o Rigaudon e o Menuet, da suíte Le Tombeau de Couperin, exemplificam, além da predileção pela dança, a segurança de ofício do compositor, ao verter para a orquestra obras que, no original para piano, já apresentavam um sentido de completude. A valsa, por sua vez, sempre atraiu, de modo especial, a atenção de Ravel, e as oito Valsas Nobres e Sentimentais, para citar apenas um exemplo, conheceram idêntico percurso, da versão para piano à realização orquestral; esta, aliás, visando à realização coreográfica. Por outro lado, Ravel compôs, para balé, obras já concebidas diretamente para orquestra, como o Bolero, ou para um efetivo mais numeroso, como o acréscimo de um coro, em Daphnis et Chloé.
A composição do Poema Coreográfico La Valse teve um percurso peculiar, que merece destaque. Desde 1906, Ravel acalentava a ideia de homenagear o célebre compositor vienense Johann Strauss. A homenagem tomou forma, em 1914, com o projeto de compor um Poema Sinfônico, intitulado Wien. A eclosão da Primeira Guerra Mundial interrompeu o trabalho, retomado em 1919 quando Serge de Dhiaghilev, diretor dos Ballets Russes, convenceu o compositor a transformar o projeto. No entanto, o próprio Diaghilev (que, em 1912, já havia levado ao palco Daphnis et Chloé), ao ouvir La Valse em versão para piano a quatro mãos – apresentada, em 1920, por Ravel e Alfredo Casella – teria dito tratar-se de uma obra-prima, porém inadequada para uma versão coreográfica: era “apenas a pintura de um balé”. A estreia da obra se deu em 12 de dezembro de 1920, como peça de concerto, e La Valse teve que aguardar nove anos até que, graças aos esforços de Ida Rubinstein (célebre atriz e bailarina russa a quem o Bolero foi dedicado) – a Opéra de Paris apresentou a primeira coreografia, assinada, ironicamente, por uma ex-integrante do balé de Diaghilev, Bronislava Nijinska.
Em La Valse, Ravel desmente, com ênfase, alguns epítetos associados ao seu nome: “relojoeiro da orquestra”, clássico, calculista… Esse Poema Coreográfico é todo fantasia, emoção, arrebatamento. É também um desafio: para os intérpretes – pela condução de um caleidoscópio de temas, atmosferas, pelo controle de dinâmicas em passagens com crescendos progressivos e em momentos de súbitos contrastes, ou ainda pelo virtuosismo orquestral, que passa também por uma escritura instrumental exigente em termos de apuração técnica. E para o ouvinte – a quem La Valse pede uma audição ativa, uma atenção por vezes difusa, em passagens nas quais, em vez de temas, o compositor emprega breves motivos melódicos, às vezes com relevo apenas no aspecto rítmico. Longe do melodismo de tantas outras obras do compositor, encontramo-nos, já nos compassos iniciais, diante de uma ambientação criada pelos acordes de contrabaixos, em tremolo e pontuações rítmicas com cordas de contrabaixos pinçadas, em pizzicati, associadas a tímpano e harpa. Dessa atmosfera emergem fragmentos melódicos, entregues aos fagotes, e o clima soturno é atravessado por certa luminosidade, nascida dos tremolos de violas e violinos, e dos glissandos de harpa. Fragmentos melódicos, derivados das intervenções iniciais dos fagotes, ganham cores variadas ao se expandirem para os sopros, e cabe ao naipe das violas a primeira e, ainda assim contida, expansão temática. Quando uma melodia ganha corpo, agora entregue aos violinos, secundados por violas e violoncelos, estamos diante de um dos crescendos arrebatadores de La Valse. Impossível não lembrar, nesse momento, a nota de programa, anexada à partitura original: “Nuvens turbilhonantes deixam entrever, através de frestas de luz, pares de valsistas. Elas se dissipam pouco a pouco: distingue-se uma imensa sala ocupada por uma multidão rodopiante.” A dinâmica em fortíssimo, resultante do crescendo, é, segundo o compositor, uma primeira explosão luminosa dos lustres de “uma Corte imperial, por volta de 1855”.
Vale lembrar que apenas uma passagem inicial de La Valse foi objeto dessa descrição. Através de um longo percurso composicional, temas se sucedem, retornam sob nova roupagem, com transformações tímbricas, dinâmicas, em contraponto com um tecido orquestral complexo, em que vários planos dão a ideia de uma rica perspectiva.
Por outro lado, a “precisão” de data e lugar, bem como as alusões à valsa vienense, podem ser entendidas através de um paralelo com o argumento de Daphnis et Chloé. Ao se inspirar em um texto grego, do século II, Ravel afirmou não se preocupar com a precisão arqueológica. Segundo o compositor, a obra era “fiel à Grécia de meus sonhos”, muito mais próxima de uma idealização dos pintores franceses do final do século XVIII. La Valse, por seu turno, é uma obra perturbadora, que integra, de forma orgânica, uma paleta de muitos matizes. Surpreende e desvela, de forma dramática, como “um turbilhão fantástico e fatal”, seu turbulento momento histórico. Vai muito além do salão e dos limites da dança.
Oiliam Lanna
Compositor e professor da UFMG