Maurice RAVEL
(1908)
Instrumentação: 4 flautas, 3 oboés, 3 clarinetes, 4 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, 2 harpas, celesta, cordas
O francês Maurice Ravel nasceu na fronteira espanhola, em uma pequena cidade dos Pirineus Atlânticos, à beira-mar. Quando ainda não completara um ano, sua família mudou-se para Paris. Mas o compositor (de ascendência basca pelo lado materno) manteve-se sempre ligado à região natal e ao país vizinho. A Espanha sinaliza toda sua trajetória musical, desde a Habanera, composta em 1895, até a última obra, D. Quixote a Dulcinéia, de 1932.
A vida do compositor transcorreu sem grandes aventuras, isenta de acontecimentos passionais marcantes. Amorosamente ligado aos pais e ao único irmão, Ravel era bastante sociável; mesmo mostrando-se reservado quanto aos seus sentimentos e emoções, cultivou numerosas amizades, duradouras e bem escolhidas. Uma doença cerebral entristeceu seus últimos quatro anos, impedindo-o de se comunicar satisfatoriamente, de criar ou até de reconhecer a própria música, embora se mantivesse lúcido. Finalmente, uma última tentativa de cura resultou no insucesso fatal de uma intervenção cirúrgica.
No Conservatório de Paris, Ravel estudou composição com Gabriel Fauré, que soube defendê-lo quando outros professores ignoraram ou interpretaram como insolência suas primeiras criações. Associando-se ao grupo turbulento e agitador dos “Apaches” – defensores da música de vanguarda de Satie, Debussy e Stravinsky –, Ravel provocou polêmica ao musicar, em 1906, os textos considerados prosaicos das Histoires naturelles, de Jules Renard. Desde então, ao longo das três primeiras décadas do século XX, enumera uma série de obras-primas incontestáveis. A princípio dedicou-se, sobretudo, ao piano e às canções. Mas, para esse gênio das sonoridades, a orquestra tornar-se-ia o meio mais adequado de expressão. Elegendo o timbre como elemento fundamental da música contemporânea, Ravel realizou verdadeiros afrescos sonoros, de combinações instrumentais inéditas e efetivas. Aceitava com gosto os desafios (por exemplo, em L’heure espagnole, de 1911, ouvem-se tique-taques de relógios, campainhas de metrônomos e matracas), sem cair na extravagância ou no exotismo gratuito. Ravel disciplina o virtuosismo de sua alquimia sonora e garante às mais audaciosas pesquisas experimentais um equilíbrio perfeito (com “a precisão minuciosa de um relojoeiro suíço”, segundo Stravinsky).
Para sua primeira obra-prima orquestral, a Rapsódia Espanhola, o compositor escolheu dois pretextos prediletos – a Dança e a Espanha. Pelo cultivo das antigas formas de dança, Ravel se insere em uma tradição francesa que remonta a Lully, Couperin e Rameau, caracterizada pela leveza de expressão, pela nitidez dos contornos melódicos (nesse aspecto, ele nada tem de impressionista), pelo encanto do colorido orquestral. E por seu fascínio pela Espanha, Ravel retoma e atualiza a tendência de compositores como Édouard Lalo (Sinfonia espanhola, de 1875) e George Bizet (Carmen, de 1877) que, no final do século XIX, procuraram na ambientação e nos ritmos ibéricos elementos renovadores para a música francesa.
A Rapsódia Espanhola divide-se em quatro movimentos: no primeiro, Prelúdio à noite (Muito moderado), um simples motivo descendente de quatro notas (fá, mi, ré, dó sustenido) repete-se de maneira hipnótica (a princípio nas cordas, depois nas madeiras e trompas), estabelecendo a ambientação desse poema noturno. Dois intermezzi introduzem um toque de sensualidade e mistério. A orquestração privilegia a transparência das cordas, os pizzicatos dos violoncelos e dos contrabaixos e a sonoridade cristalina da harpa e da celesta.
A Malagueña (Bastante vivo) apresenta o tema nos trompetes e utiliza com maestria toda a exuberância da percussão. Uma seção central contrastante se estabelece com um lânguido motivo no corne inglês. Antes do final, o misterioso tema de quatro notas do primeiro movimento, sempre perturbador, reaparece, e a dança (com o ritmo marcado pelos contrabaixos) pouco a pouco se desvanece.
A Habanera (Bastante lento e com um ritmo cansado) foi extraída de um conjunto de peças para dois pianos, intitulado Sites auriculaires, escrito entre 1895 e 1897. As madeiras preparam a entrada da melodia que, sobre o ritmo de habanera, apresenta seus quatro temas passando por diversos instrumentos, até se extinguir em misterioso silêncio.
A Feria (Bastante animado) é o movimento mais extenso. Apresenta muitos contrastes e se inicia alegremente com o flautim. A seguir, a dança irrompe com seus quatro principais motivos bem delineados: o primeiro é dominado pelo timbre vibrante do trompete sobre o ritmo do pandeiro; o segundo é confiado à flauta e depois ao corne inglês; o terceiro vale-se do contraste das sonoridades de clarinetes e fagotes; e o último motivo, insistente, alterna-se entre a flauta e o trompete. Após um crescendo estonteante, a dança é interrompida por uma passagem misteriosa, irônica e apática. O corne inglês apresenta, então, uma melodia nostálgica à qual respondem os glissandos das cordas. Mais para o final, as quatro notas descendentes do primeiro movimento reaparecem, antes da volta apoteótica da dança, ritmada pelas vibrantes castanholas, em um turbilhão de irresistível encantamento sonoro.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras pela PUC Minas, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais, autor do livro Músico, doce músico.
Olho:
Para esse gênio das sonoridades, a orquestra seria o meio mais adequado de expressão. Elegendo o timbre como elemento fundamental da música contemporânea, Ravel realizou verdadeiros afrescos sonoros […].