Uirapuru

Heitor VILLA-LOBOS

(1917)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, saxofone soprano, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, piano, cordas.

 

Villa-Lobos compôs duas obras orquestrais para dança – Amazonas e Uirapuru – diametralmente opostas em seu caráter. Amazonas retrata a natureza grandiosa, utilizando uma orquestra que, conforme dizia Mário de Andrade, “avança derrubando árvores, tonalidades e tratados de composição”. Uirapuru, ao contrário, é uma delicada partitura, com audaciosas combinações tímbricas e efeitos orquestrais surpreendentemente moldados ao encanto do argumento indígena.

 

As duas obras, desvinculadas das intenções coreográficas, tornaram-se marcos importantes da música sinfônica brasileira. No contexto da produção de Villa-Lobos, antecipam algumas constantes de sua linguagem madura, como a acentuada polirritmia e aspectos atonais ou politonais. A instrumentação inabitual inclui o violinofone (violino acoplado a uma trompa, criação do compositor) e percussão bem brasileira, com reco-reco, coco, surdo e tamborim.

 

Villa-Lobos reunira muito material folclórico quando, na década de 1910, viajou pelas capitais litorâneas até o Recife. Depois empreendeu, de Fortaleza a Manaus, uma aventura marcada por peripécias incríveis, à procura das vozes da natureza e dos habitantes da região. Orgulhoso desse aprendizado, o compositor afirmava ter sido seu principal livro de harmonia o mapa do Brasil. Uirapuru foi um dos primeiros sucessos de Villa-Lobos na utilização de material folclórico. Contudo, na obra percebem-se também as fortes influências dos modelos europeus de Puccini, Debussy, d’Indy e Wagner (logo no início ouve-se, com outra orquestração, o famoso acorde de Tristão e Isolda).

 

Frequentemente faz-se um paralelo entre os poemas sinfônicos Uirapuru, de Villa-Lobos, e O pássaro de fogo, de Stravinsky. Ambos referem-se a um pássaro encantado transformado em homem e foram compostos no início das carreiras de seus autores. Villa-Lobos criou o argumento de Uirapuru organizando diferentes lendas brasileiras sobre essa ave de canto maravilhoso:

 

‘Em uma floresta calma e silenciosa, aparece um índio feio, maldoso Feiticeiro, tocando uma flauta de osso. Da densa folhagem das árvores surgem jovens e belas índias que afugentam o intruso com empurrões e xingamentos. Elas procuram o Uirapuru, trovador mágico que, segundo os velhos sábios da tribo, outrora fora o Deus do Amor. Ao longe, trilos suaves anunciam a presença do pássaro cobiçado. Enfeitiçada por seu mavioso canto, a mais linda das índias, adestrada caçadora, fere-o com sua flecha. Caído ao chão, o Uirapuru transforma-se no mais belo cacique da floresta. Entretanto, o som fanhoso e agourento da flauta de osso anuncia a volta do índio feio, sedento de vingança. E apesar do protesto das jovens, o ingênuo guerreiro, demonstrando toda sua coragem, enfrenta o Feiticeiro. O cacique é ferido mortalmente e as índias, com ternura e tristeza, transportam seu corpo para uma fonte. Subitamente o jovem volta a ser pássaro e, voando, desaparece cantando por sobre as árvores. Desde então, no cenário da floresta, reino encantado de muitos sons, de grilos, mochos, corujas, bacuraus, sapos e outros animais cantadores, tudo silencia quando o Uirapuru canta sua longa e bela melodia.’

 

Villa-Lobos revisou a partitura de Uirapuru em 1934 e, no ano seguinte, o poema foi apresentado, pela primeira vez, como balé, no teatro Colón de Buenos Aires, coreografado por Nemanoff e regido pelo próprio compositor.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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