Sinfonia nº 9 em Mi bemol Maior, op. 70

Dmitri SHOSTAKOVICH

(1945)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

As quinze sinfonias de Shostakovich distribuem-se de forma bastante regular na carreira do compositor e suas peças “públicas” foram dedicadas às grandes massas. Em algumas, o conteúdo político-programático corresponde a um determinado acontecimento histórico e, sob tal aspecto, tornam-se obras “circunstanciais”.

 

Ao longo de uma trajetória que o transformou no músico emblemático da Rússia soviética, Shostakovich estabeleceu relações contraditórias com o Regime — duras advertências, expurgos e condenações alternaram-se com grandes honrarias, títulos e prêmios oficiais. Tal dubiedade manifesta-se em suas sinfonias com a estratificação de dois discursos distintos — há uma voz grandiloquente, exterior e heroica, ao lado de outra, íntima, meditativa e austera.

 

Shostakovich escreveu sua Primeira Sinfonia aos dezenove anos, coincidentemente, no mesmo ano do célebre filme de Sergei Eisenstein, O encouraçado Potemkin (1925). Com o sucesso dessas obras, o cineasta e o compositor levantaram, altaneiros, o estandarte do Construtivismo russo, vanguarda artística que combatia a tradição romântica associada ao passado czarista. Na década de 1920, a política de abertura cultural do governo de Lenin permitiu que Shostakovich desenvolvesse, sem restrições, sua linguagem musical. O jovem compositor filiou-se à Associação para a Música Contemporânea, fascinado pelo atonalismo livre, pelo serialismo, pelo jazz, pelo uso sistemático de dissonâncias e pelos ritmos complexos das danças camponesas. Admirava particularmente Alban Berg, Bela Bartók e Stravinsky, embora desprezasse os hábitos cosmopolitas desse ilustre compatriota.

 

Com a morte de Lenin, a implacável censura stalinista sinalizaria outros rumos para os artistas soviéticos. À época dos ensaios de sua Quarta Sinfonia, em 1936, Shostakovich foi declarado “inimigo do povo”, acusado de formalismo, mau gosto e imoralidade. A ópera Lady Macbeth foi proibida e o compositor forçado a se retratar publicamente. As cinco sinfonias seguintes, compostas no período stalinista, traduzem seu inevitável propósito — sincero ou simulado — de se submeter aos ideais de inteligibilidade e simplicidade neoclássicas, preconizados pelo Comitê Central. Entretanto, mostram a consolidação de uma linguagem extremamente pessoal, pois Shostakovich, ao reler o tradicional cânone musical ocidental, enriquece-o com ousadas aquisições contemporâneas. Atinge assim os limites extremos de um expressionismo ultrarromântico, de caráter frequentemente heroico e de grande apelo socializante.

 

A Sinfonia nº 9 em Mi bemol maior, op. 70, coincidindo com o final da guerra (1945), era aguardada como o coroamento vitorioso de um tríptico patriótico. Esperava-se uma apoteose comemorativa da contraofensiva esmagadora das tropas russas sobre o território alemão, já que a Sétima e a Oitava sinfonias evocavam, respectivamente, o cerco da cidade de Leningrado e a resistência heroica dos defensores de Moscou durante os ataques nazistas. O próprio Shostakovich manifestara o desejo de criar uma grande obra coral (possivelmente associada à Nona de Beethoven). Mas o compositor surpreendeu o público e provocou a ira de Stalin, ao apresentar, em novembro de 1945, a mais breve de suas sinfonias. A Nona de Shostakovich tem inspiração objetiva, simplicidade clássica e boas doses de sarcasmo e ironia. A fabulosa habilidade arquitetônica lembra a Oitava de Beethoven e a aproxima de Haydn, compositor que Shostakovich estivera estudando e regendo pela época de sua composição.

 

O primeiro andamento, Allegro, talvez seja o mais humorístico de toda a música de Shostakovich, pela importância temática confiada a um rufo de caixa e aos saltos burlescos de um trombone que parece procurar uma tonalidade indefinida. O movimento inicia-se com um agitado tema nas cordas, cujo caráter espirituoso culmina com a alegre intervenção do piccolo. Os insistentes ritmos de marcha, tão característicos do compositor, aqui se apresentam como uma exaltação habilmente estilizada da música circense.

 

O Moderato, apesar de sua reduzida dimensão, é eloquente, expressivo e lírico, com uma melodia de sabor oriental na clarineta e oscilações entre os modos (maior/menor). Esse lento intermezzo parece advertir o ouvinte de que, por trás do cinismo dos outros movimentos, se esconde a dor.

 

Os três últimos movimentos se unem para formar um único bloco. O terceiro, Presto, é um scherzo. Na primeira seção, as madeiras e as cordas movimentam-se, leves como folhas soltas ao vento. A contrastante parte central exibe, nos metais e cordas, os ritmos cossacos tão queridos da música russa e um incisivo solo de trompete. O Largo é um interlúdio, único movimento realmente dramático da sinfonia. Às fanfarras ásperas dos trombones e da tuba, responde um nobre solo do fagote por sobre cordas abafadas. De seu sinuoso movimento descendente, surgem as saltitantes linhas de aspecto coreográfico do Allegretto final, depois desenhadas pelas cordas. Quando, num clímax, o primeiro tema reaparece em toda a orquestra, o segundo intervém zombeteiro nas madeiras e no trompete. Pausa; e uma coda apressada termina a sinfonia de maneira abrupta, irônica e propositadamente inconclusiva. Habilmente planejada e concisa, a Sinfonia nº 9 exibe o idioma de Shostakovich em todo o seu esplendor, sem precisar lançar mão de longos e prolixos movimentos.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Doutor em Letras, Professor da escola de Música da UEMG; autor do livro Músico, doce músico.

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