Franz Liszt
Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.
Foram traçadas por Liszt as diretrizes fundamentais do poema sinfônico. Esse gênero orquestral, que nasce do espírito musical romântico, encerra pelo menos dois aspectos muito importantes: em primeiro lugar representa um meio para escapar às regras formais e às estruturas musicais rigidamente estabelecidas e cristalizadas no século XVIII. Sem forma ou estrutura preestabelecida, o poema sinfônico pode dar vazão à liberdade criativa do compositor.
Em segundo lugar estabelece, no seio do Romantismo, uma relação bastante original entre a Música e a Literatura. Está na base do poema sinfônico um roteiro (ou programa) literário, que norteia o desenrolar dos episódios musicais. Nesse sentido, pode-se dizer que o poema sinfônico tem realmente uma dimensão narrativa. No entanto, é ingênuo pensar que essa relação se resume a isso: ela é bem mais complexa.
O poema sinfônico não se reduz à mera representação musical de um roteiro literário. Ele é uma construção musical gerada pelas impressões psicológicas ou emocionais que determinada obra literária deixa marcadas no compositor; é a representação musical dessas impressões, elas mesmas uma espécie de interpretação da obra literária original. Dessa forma, o poema sinfônico é a primeira grande tentativa, ao menos na música, de transcodificação, no sentido mais radical do termo. Ora, em tal processo de tradução o compositor é, ao mesmo tempo, leitor e criador. Transcodifica as marcas que deixam nele determinadas obras literárias, transformando-as em objeto sonoro, traçando uma narrativa musical que nem sempre é linear.
Se é em Liszt que esse procedimento encontra seu primeiro grande agente, seria mesmo de se esperar que isso também transparecesse, em maior ou menor grau, em outras obras suas, além dos poemas sinfônicos. Exemplos emblemáticos disso são os vários Sonetos de Petrarca, dentre muitas das outras obras que constituem os três cadernos dos Années de Pélérinage, compostos para piano. Na sua música orquestral, as sinfonias Dante e Fausto. Mencionem-se à parte, porém, as quatro Valsas Mefisto, compostas entre 1859 e 1885.
Na base dessas quatro obras está o Fausto, trama literária que se incorporou de pronto ao imaginário romântico. O poema mais importante sobre o mito do Fausto é, sem dúvida, o de Goethe. Essa obra, talvez mais que o Werther, parece ter impressionado vigorosamente o romantismo musical. Nikolaus Lenau (1802-1850), porém, escreve em 1836 o seu próprio Fausto, trinta anos após a primeira publicação da obra de Goethe. De Schubert a Liszt (e mesmo depois, direta ou indiretamente) a angústia de Fausto, o drama de Margarida e a personificação de uma e do outro, em Mefistófeles, desvelam uma humanidade conflituosa que foi terreno fértil para a criação musical do século XIX.
Das quatro Valsas Mefisto, as duas primeiras foram compostas originalmente para orquestra, porém mais tarde transcritas, pelo compositor, para piano solo, piano a quatro mãos ou para dois pianos. As duas outras foram compostas para piano solo e, delas, Liszt não fez nenhuma versão orquestral.
A primeira Valsa Mefisto tem três versões. Depois do original para orquestra, Liszt faz uma versão para dois pianos, mera transcrição para o teclado da obra orquestral. Há uma versão para piano solo, porém, que contém acréscimos e alterações, constituindo, assim, uma obra independente.
A versão orquestral, no entanto, é a segunda de duas pequenas obras para orquestra baseadas no Fausto, intituladas Dois Episódios do Fausto de Lenau, compostas entre 1856 e 1861. Note-se, portanto, que o Fausto em que se baseiam essas obras não é o de Goethe, mas o de Nikolaus Lenau. Elas descrevem, dele, duas cenas.
Na primeira, intitulada Procissão Noturna, Fausto cavalga à noite pela floresta, alheio à beleza que o cerca. Então se apercebe de um luzir vermelho e de um canto longínquo que se aproxima. Trata-se de uma procissão de monges. Fausto se esconde, mas os observa. Sente crescer em si um sentimento de angústia, pelo contraste entre a sua felicidade pessoal, superficial e ilegítima, e a felicidade plena dos monges. Ele chora amargamente ao passar da procissão, contemplando seu próprio destino e abraçando seu fiel corcel.
Na segunda, chamada de Valsa Mefisto nº 1, Fausto e Mefistófeles chegam a uma estalagem onde se festeja um casamento. Induzindo Fausto a tomar parte na festa e achando que o violinista tocava sem muito entusiasmo, Mefistófeles arrebata dele o instrumento e dá à dança um ritmo delirante. Sentindo-se remoçado, Fausto toma nos braços uma aldeã com quem dança loucamente horas a fio, afastando-se depois, com ela, em direção à floresta, enquanto se ouve o canto de um rouxinol.
Era expectativa de Liszt que a Procissão Noturna e a Valsa Mefisto fossem publicadas juntas, o que não aconteceu. Assim, a primeira peça caiu em relativo esquecimento, e a Valsa passou a ser frequentemente executada como peça isolada. Estreada em 1861 pela Orquestra da Corte de Weimar, sob a batuta do próprio Liszt, a primeira Valsa Mefisto, junto com seu par, constituem um belo exemplo musical desses contrastes tão humanos que o mito do Fausto representa.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.