Orfeu

Franz Liszt

(1853/1854)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, harpa, cordas.

 

Dos treze poemas sinfônicos compostos por Franz Liszt, Orfeu é o quarto, considerando-se a ordem cronológica em que foram criados (as primeiras publicações apresentam uma ordem um pouco diferente). No entanto, desse total depreende-se um subgrupo de quatro obras que poderiam ser definidas como esboços de personagens: são elas Tasso, Prometeu, Mazeppa e Orfeu. Essas quatro peças trazem um diferencial em relação à proposta fundamental do poema sinfônico: os programas em que se baseiam não se vinculam a um esquema narrativo linear, mas à interpretação de aspectos psicológicos, sociais, morais ou éticos que essas personagens literárias ou mitológicas condensam e representam.

 

Em prefácio à partitura de Orfeu, Liszt menciona a sua contemplação de um vaso etrusco, em que a figura de Orfeu, segurando sua lira, aparece como o espírito civilizador da humanidade. O fato de Liszt ter ou não, de fato, visto esse vaso é menos relevante do que a associação dessa interpretação particular do mito de Orfeu à que dele faz, em 1829, Pierre-Simon Ballanche (escritor e filósofo francês, 1776-1847). Em sua obra, homônima à de Liszt, Ballanche trabalha o mito de Orfeu como símbolo e guia da trajetória da humanidade em direção à era moderna, através das leis e da organização social.

 

Composto entre 1853 e 1854, o Orfeu de Liszt foi estreado em Weimar, em fevereiro desse último ano, e conduzido pelo próprio compositor. Sua estreia figurou como uma introdução à primeira performance da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck, naquela cidade. Tal evento foi parte das celebrações do aniversário da Grã-Duquesa de Weimar, Maria Pavlova, que era grande apoiadora de Liszt.

 

O que há de primeiramente notável na obra de Liszt é sem dúvida a instrumentação, que evoca abertamente o mito de Orfeu. Já de saída, antes da apresentação do primeiro tema pelas cordas, um breve diálogo entre trompa e harpa abre a cena, descortinando a figura central da obra. A harpa ocupa aí lugar de destaque, não exatamente como solista, mas como colorido especial, cuidadosamente inserido, pelo seu aspecto simbólico, na proposta temática do poema sinfônico.

 

Na estrutura, Liszt opta aqui pela forma sonata, que trabalha com bastante liberdade. Quanto ao caráter, a obra é surpreendente, por dois aspectos: em primeiro lugar, ao contrário da maior parte de seus poemas sinfônicos, o Orfeu de Liszt se apresenta muito mais contemplativo. Daí, talvez, a escolha por dar voz a diversos instrumentos solistas, que despontam do corpo orquestral. Em segundo lugar, talvez mesmo por isso, talvez pelo tratamento harmônico, com sutis cromatismos, talvez por certas particularidades da orquestração, o Orfeu de Liszt lembra-nos abertamente certos trechos futuros de um Wagner, como o de Parsifal (1882) e do Tristão (1859).

 

Ainda visceralmente romântico, o Liszt que se apresenta aqui já faz antever uma estética que, posterior à sua, iria transformar todo o caminho da música no Ocidente.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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