Noite transfigurada, op. 4

Arnold SCHOENBERG

(1917)

Instrumentação: Cordas

“Minha obra não ilustra nem ação nem drama, mas se limita a exprimir sentimentos humanos.” Ainda que o compositor tenha se referido, dessa forma, à Noite Transfigurada, é possível pensar na obra como uma espécie de drama sem palavras, perfeitamente articulado às cinco estrofes do poema de Richard Dehmel que lhe serve de inspiração. Zwei Mensch apresenta o diálogo de dois amantes, durante uma caminhada à luz da lua. A mulher, com passos incertos, sob o peso da culpa, confessa uma gravidez, fruto de relacionamento anterior. Diante de seu “olhar sombrio”, que interroga “mergulhado na claridade”, o homem oferece mais que um consentimento. Assume a criança como filha, fruto “dos milagres da natureza, que transformaram essa noite trágica em noite transfigurada”. Aqui é o próprio compositor que se refere à obra, ao observar ainda que são retomados “temas das partes precedentes, a fim de glorificar esse momento de transcendência”.

Entre os temas, que circulam pela partitura como Leitmotiven, o primeiro é enunciado, logo de início, dobrado em oitavas pelas violas e violoncelos. A reminiscência da melodia de Gute Nacht, o Lied que abre a longa caminhada da “Viagem de Inverno” de Franz Schubert, aponta para o diálogo que o compositor empreende com a tradição. É o diálogo que, em artigo de 1931, Schoenberg ilustra ao enumerar um longo aprendizado com diversos compositores. Dentre eles, dois estão muito presentes em Verklärte Nacht: Wagner e Brahms. Do primeiro, entre outras lições, o autor faz referência ao “emprego que se pode fazer dos temas, segundo sua expressão” e às possibilidades de “conceber temas e motivos enquanto entidades autônomas, o que permite sua superposição dissonante a certas harmonias”. Na Noite transfigurada, mesmo com a ambiência dissonante e a intrincada trama polifônica, a expressão exacerbada de sentimentos arrebata o ouvinte. Além de Wagner, a presença brahmsiana é forte, em aspectos como a estruturação melódica e harmônica, e se faz notar também pela observação schoenberguiana de “não economizar, não regatear quando a clareza exige mais espaço; levar cada figura às suas últimas consequências”. Esse princípio está associado principalmente à recorrência de materiais rítmico-melódicos. Por outro lado, a repetição, mesmo submetida a transformações que acompanham de perto a própria evolução do drama, contribui para a compreensibilidade da obra. Exemplo disso é a volta, em diversos momentos, do tema que anunciava o início da caminhada dos amantes, e que, ao final, é revisitado. Trata-se de uma seção conclusiva, de rara leveza e transparência, em que a tonalidade mesma – agora Ré maior – participa da transformação de que fala o poema.

Verklärte Nacht é uma das obras emblemáticas do expressionismo em Música. Obra-prima, inesgotável, que ainda tem muito a dizer, assim como as lições da trajetória de seu jovem criador. Precoce, aos 25 anos, com uma segurança de ofício admirável para um autodidata – que, vale dizer, ensinou e ensina, direta ou indiretamente, a ilustres compositores, do século XX aos nossos dias –, Schoenberg deixou-nos um exemplo de trabalho, em meio a lutas e dificuldades de toda ordem. Legado de um espírito inquieto e combativo que, a exemplo do argumento dessa Noite transfigurada, era dotado de uma capacidade singular de superação.

Oiliam Lanna
Compositor e regente, doutor em Linguística (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG.

Olho:
Verklärte Nacht é uma das obras emblemáticas do expressionismo em Música. Obra-prima, inesgotável, que ainda tem muito a dizer, assim como as lições da trajetória de seu jovem criador.

anterior próximo