Claude DEBUSSY
Instrumentação: 2 piccolos, 4 flautas, 2 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trompetes, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.
“A música moderna desperta com A tarde de um fauno”, escreveu uma vez o compositor Pierre Boulez (apud Roland de Candé: História Universal da Música). De fato, na imensa complexidade das transformações por que passa a Música Ocidental na aurora de nossa era, Debussy talvez seja a porta de entrada mais amplamente aberta. Ao contrário das tendências da Segunda Escola de Viena (que, em certo sentido, se posicionam esteticamente num ponto diametralmente oposto ao seu), nem ele nem sua música criaram ou se propuseram a criar uma “escola”, mas abriram as infindas possibilidades do caminho mais audacioso e mais “selvagem” para a linguagem musical da Modernidade: o da liberdade e do prazer. Por isso mesmo é impossível enquadrar genuinamente a sua música em qualquer um dos muitos “ismos” que povoam as críticas e teorias das artes e da literatura já no começo do século XX. A associação de sua linguagem ao Impressionismo ou ao Simbolismo não pode ser senão superficial e forçada.
Nesse sentido, Debussy é certamente o mais revolucionário dos compositores que despontam na virada para a era contemporânea. Ele escapa a todas as formas possíveis de academismos, o que levou seu mestre Ernest Guiraud a declarar-lhe, ao ouvi-lo encadear alguns acordes ao piano, que o que ouvira era inegavelmente bonito, mas teoricamente absurdo. A razão desse estranhamento se deve a Guiraud não reconhecer, na harmonia de Debussy, o princípio e a origem contrapontísticos que regem a harmonia tradicional: sua harmonia se dá a liberdade da “não-direcionalidade” funcional e de explorar os acordes em seu efeito tímbrico, mais que numa relação de causa e efeito. Também em outros parâmetros da construção musical a linguagem de Debussy é de um empreendedorismo insuspeito: a aparência da fluidez rítmica de sua música relativiza a noção de uma métrica explicitamente marcada, que, a despeito disso, é paradoxalmente dotada de uma precisão quase cartesiana, inclusive em sua flexibilidade. A sua técnica de orquestração, que provocou discussões entre seus contemporâneos, explora descontinuidades e valoriza o próprio timbre como parâmetro musical autônomo e como material temático. A partir de uma determinada fase, da qual os Noturnos (1899) são marco, Debussy abandona o princípio clássico de desenvolvimento e a própria noção tradicional de tema: não há mais o desenvolvimento de uma proposição inicial, mas justaposição de ideias, entre as quais se estabelecem redes de relações e das quais derivam novas proposições.
Não há uma única obra, na música sinfônica de Debussy, que esteja aquém dessa ruptura profunda com uma ideia tradicional da música, de sua linguagem ou de sua estrutura. No entanto, suas sonoridades não procuram intencionalmente chocar ou causar incômodo. Há algo de hedonista na sua música, que é produto da liberdade criativa a que ela se dá o direito: mesmo libertando a dissonância de sua função causal, a música de Debussy, posto que tenha causado (e ainda cause) certo estranhamento, sempre provoca uma sensação inequívoca de encanto.
O tríptico Imagens para orquestra, composto entre 1905 e 1912, tem Ibéria como quadro central, emoldurado por duas danças: Gigues e Rondes de Printemps. A despeito disso, as três partes da obra foram concebidas e mesmo estreadas separadamente. Ibéria, portanto, foi composta entre 1905 e 1908 e é, ela mesma, dividida em três movimentos, o que cria um sutil efeito de espelhamento ou de metalinguagem, no todo das Imagens. Apesar da sugestividade do título, Ibéria, não se trata de um resgate da cultura musical espanhola, nem sequer da representação, por um olhar estrangeiro, de seus exotismos característicos. Se é certo que a Debussy impressionam certos modalismos e certos esquemas rítmicos da música espanhola (assim como da música russa, que ele conheceu quando aí vivia, e da música oriental, com que teve contato nas Exposições Universais de Paris), Debussy faz deles argumentos para seu próprio processo de afastamento individual dos esquemas redutores de uma linguagem musical continuísta e homogeneizante.
Dessa forma, há, por certo, em Ibéria, a presença de elementos característicos da música espanhola. Esses elementos, porém, são evocados, mas nunca citados: canções populares e uma rítmica vibrante, no primeiro movimento. A sensualidade do ritmo da habanera, no segundo movimento, e, de novo, uma rítmica imperiosa no terceiro movimento, que faz lembrar trechos de Petrushka, de Igor Stravinsky, composta cerca de dois anos depois. A presença sempre fragmentada dessas evocações é costurada ora pela retomada de algum elemento melódico já proposto, ora pela própria inventividade de Debussy, que nunca se camufla, guardando-se o direito à liberdade do sonho e da fantasia. Associar esses procedimentos criadores a certas tendências plásticas, como o universo onírico do Surrealismo ou à pluridimensionalidade do Cubismo (que curiosamente tiveram grandes expoentes representados por artistas ibéricos), seria reduzir a música de Debussy a rótulos que ele sempre recusou: sua música é aquilo que ela fala por si.
Moacyr Laterza Filho
Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais e na Fundação de Educação Artística