A Sagração da Primavera é uma obra atemporal. O argumento que lhe dá origem é um mergulho na noite dos tempos, e sua realização musical parece ter, ao lado de uma evidente modernidade, algo de uma força atávica. Segundo o compositor, a ideia da obra lhe ocorreu a partir da visão de uma jovem, circundada por sábios, em uma dança ritual que culminaria em sua morte – oferenda para tornar propício o deus da primavera. O passo seguinte foi dado quando Stravinsky e seu amigo Nikolai Roerich – pintor e intelectual interessado na antiguidade eslava – idealizaram o cenário de danças e de ritos encantatórios que serviria de fio condutor para a obra. Desta, costuma-se lembrar do argumento ou das audácias musicais mais diversas – harmonias, texturas, invenções orquestrais, rítmica –, mas nem sempre se dá ênfase ao contexto em que veio a público pela primeira vez. Após a tumultuada estreia, em 29 de maio de 1913, no Théâtre des Champs-Elysées, Stravinsky relatou: “estávamos excitados, zangados, desgostosos e… felizes”. Muito embora as obras anteriores – O pássaro de fogo e Petrushka –, encomendadas pela companhia dos Balés Russos, já apresentassem facetas particulares da linguagem stravinskyana – a paleta orquestral do primeiro e, do segundo, uma evidente vivacidade rítmica –, é com a Sagração que ocorre, de modo peculiar, a eclosão de uma rítmica arrebatadora e de um tratamento motívico particular, ao qual se subordinam breves fragmentos melódicos.