Hector Berlioz
Hector Berlioz passou a infância em sua pequena cidade natal, durante as guerras napoleônicas. O pai médico, homem metódico e culto, tomou a si a educação do filho — gramática, literatura, história, geografia, matemática e iniciação musical. Berlioz tocava violão (sem jamais se tornar, ao contrário da maioria dos compositores da época, um bom instrumentista) e, sozinho, estudava tratados de harmonia, esboçando suas primeiras composições.
O pai queria o filho médico, mas, em Paris, Berlioz trocava a Escola de Medicina pela Biblioteca do Conservatório com as partituras de seu ídolo Gluck e tornou-se aluno particular de Lesueur, diretor da Capela Imperial. Em 1827, assistindo a uma representação de Hamlet, o jovem compositor rendeu-se à revelação do gênio de Shakespeare, além de se apaixonar perdidamente por Harriet Smithson, atriz irlandesa que interpretava o papel de Ofélia. No ano seguinte, lê o Fausto de Goethe e aprecia todas as sinfonias de Beethoven, executadas no Conservatório de Paris.
Sob esses estímulos literários e musicais, Berlioz redigiu o programa de sua primeira obra-prima, a Sinfonia Fantástica. Desde então, compôs sempre estimulado por impressões literárias, organizando sua música como ilustração de um enredo poético, frequentemente de caráter autobiográfico. O aspecto confidencial, tão próprio do Romantismo, assume feição muito peculiar em Berlioz, para quem a realidade e o imaginário se complementam. Transformou sua obra em um gesto autobiográfico, fez da vida um romance tempestuoso e soube ainda reinventá-las, quando escreveu suas admiráveis (mas pouco confiáveis) Memórias. Grande músico do romantismo francês, Berlioz prende-se à forma mais emocional do romantismo alemão, ao estabelecer uma voluntária confusão entre o real e o imaginário.
Entretanto, por mais programática e deliberadamente ilustrativa que seja em sua gênese, a música de Berlioz impõe-se por qualidades especificamente musicais, muitas decididamente inovadoras. Há nessa música uma prodigiosa riqueza de melodias, repletas de surpresas e contornos inesperados, imprevisíveis. A orquestração é, ao mesmo tempo, brilhante e sutil. O timbre nela desempenha papel fundamental, pela particularização de cada som (no tocante às suas possibilidades de coloração), pelo refinamento da mistura das nuanças orquestrais e pela distribuição espacial dos instrumentos. A rudeza harmônica, o cultivo do realismo sonoro, a multiplicidade rítmica, tudo é de uma novidade surpreendente para o século XIX e possui certo impulso modernista, rejuvenescedor – ainda hoje controvertido – que causou muito estranhamento em seus contemporâneos. Berlioz viveu incompreendido e até ridicularizado. Para sobreviver, colaborou como crítico em jornais, revelando-se brilhante escritor, arguto em suas observações musicais, mas de radicalismo pouco diplomático. Os muitos opositores, a incompreensão do público e a péssima situação financeira convenceram-no finalmente a deixar a França. A partir de 1842, empreendeu contínuas viagens artísticas por diversos países da Europa, especialmente à Alemanha. Esteve na Hungria, na atual República Checa e visitou a Rússia duas vezes. Apresentava-se regendo suas obras e continuava compondo incansavelmente, além de se dedicar a publicações literárias e didáticas (notadamente o revolucionário Tratado de Orquestração e Instrumentação).
Berlioz dedicou-se quase exclusivamente à música orquestral. Quase nada nos legou para instrumentos solo ou música de câmara, e o canto, frequentemente, aparece em sua obra como componente instrumental.
O Corsário, uma das cinco Aberturas de Concerto de Berlioz, percorreu longo caminho, do projeto de 1831, elaborado em Roma (quando bolsista da Vila Médicis), até a publicação de 1852. Em 1845, a obra foi executada com o título de Le Tour de Nice, relacionando-se, assim, às duas viagens de Berlioz a essa cidade (em 1831 e 1844). No catálogo de 1846, aparece com o nome de Le Corsaire rouge, título francês do livro de James Fenimore Cooper, muito apreciado pelo compositor. Finalmente, a versão revista de 1855 faz referências inequívocas ao romance homônimo de Byron (publicado em 1814). E, dessa forma, o corsário Conrad, protótipo do revoltado, associa-se ao também byroniano herói da sinfonia Haroldo na Itália.
Nos compassos iniciais da Abertura de O Corsário, notas fulgurantes das cordas e das madeiras sugerem o temperamento turbulento de Conrad. As duas personagens femininas aparecem nas partes contrastantes do Adagio sostenuto (Medora abandonada) e no Allegro assai de caráter épico (a exótica Gunara). Ao final, o tema de Conrad é retomado, antes da conclusão em quatro acordes poderosos. Página de força e sedução irresistíveis, O Corsário possui as qualidades de riqueza orquestral e fantasia próprias do gênio de Berlioz, com a vantagem de maior concentração do material em um espaço sonoro mais reduzido.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor de Música da UEMG, autor do livro Músico, doce músico.