Romeu e Julieta: Abertura-Fantasia

Piotr Ilitch TCHAIKOVSKY

(1880)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

A abordagem de Tchaikovsky à composição musical, mesmo à chamada música absoluta, era antes de tudo um gesto autobiográfico, confessional, ao qual confiava todo seu mundo interior. Em seus escritos, ele se refere frequentemente ao Destino (o Fatum), transformando-o em motivo programático gerador de temas musicais. Entretanto, o compositor soube conciliar a concepção intimista de sua arte com o culto rigoroso da forma. Mesmo encontrando dificuldades em moldar o anseio de exprimir emoções e sentimentos pessoais à tradicional e característica forma sonata, Tchaikovsky insistiu em cultivá-la, pois a considerava um poderoso fator de unidade e coerência textual. Por mais deliberadamente descritiva que seja em sua gênese, a obra de Tchaikovsky impõe-se por suas qualidades especificamente musicais, sobretudo pela beleza melódica, pelo domínio magistral da orquestração e pela prodigiosa intuição do poder expressivo dos instrumentos.

 

Entre os muitos textos literários que lhe serviram de inspiração, Tchaikovsky se comovia particularmente com a estória de Romeu e Julieta, a obra mais popular de Shakespeare. Para escrevê-la, em versos de um lirismo inigualável, o grande escritor seguiu fielmente o enredo de uma peça de Artur Brooke, publicada em 1562. Mas enquanto a versão moralista desse autor atribui o trágico desenlace da história ao fato dos jovens amantes desobedecerem à vontade de seus pais, Shakespeare desloca o foco narrativo para o ódio entre as famílias rivais, transformando os namorados em vítimas de um destino cruel. Já nas palavras do Prólogo, com a afirmativa de que as estrelas fizeram nascer “um par de amantes desditosos”, o Destino torna-se protagonista da tragédia.

 

Em sua Abertura, Tchaikovsky não se propõe a ilustrar ou seguir a narrativa de toda a peça de Shakespeare. Preferiu evocar a tragédia, fundamentando sua composição em três temas que retratam: o frade Lourenço; a guerra entre os Montéquio e os Capuleto; e o amor dos jovens amantes. O uso desses três temas permite uma ampliação da forma sonata, com uma prodigiosa riqueza de ideias.

 

O motivo de Frei Lourenço, testemunha do destino implacável, é um coral (instrumental) solene e religioso que serve de prólogo e de epílogo para toda a obra.

 

A discórdia entre as duas famílias é retratada pelo tema A da forma sonata. Apresenta-se ritmicamente animado, pontuado por golpes de pratos que evocam os choques das espadas inimigas.

 

O belíssimo tema B (o do amor) confia aos violoncelos uma melodia doce e envolvente, cantada sobre os acordes da harpa. Divide-se em duas partes – o motivo do amor de Julieta (a ternura) e o motivo da morte de Romeu (a paixão). Na reexposição, esses dois elementos aparecerão em ordem inversa.

 

No final, o canto de amor transforma-se em dueto de adeus, desaparecendo sob acordes fúnebres associados aos golpes que fecham os caixões. E a variação do tema coral de frei Lourenço sugere, então, uma prece pelo triste destino dos jovens amantes.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado.

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