César GUERRA-PEIXE
Instrumentação: flauta, oboé, 2 clarinetes, fagote, 2 trompas, 2 trompetes, 2 trombones, tímpanos, percussão, cordas.
Aos prelúdios que, no Nordeste, “dão o tom” dos cantos versificados, assim como aos fragmentos dedilhados ao violão para enriquecer os versos e desafiar o improviso do poeta, e, ainda, ao solo instrumental que permite aos cantadores descansarem suas vozes – dá-se o nome de ponteado. Ponteado e não ponteio, pois que este último seria uma “corruptela inventada por intelectuais”, afirma Guerra-Peixe. Por sua fidelidade à cultura popular, o compositor tornou-se um dos mais respeitados folcloristas do país, um compositor nacional em termos, além de estéticos, sociais. Guerra-Peixe foi um agente de destaque no universo da radiodifusão, compôs para cinema, estudou a dança de salão e foi professor de inúmeras instituições de música – dentre as quais a Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de admirável ativista no campo das discussões artísticas.
Afora inúmeros registros da cultura sonora nordestina e paulista, Guerra-Peixe publicou em 1955 Maracatus de Recife, elaboração de sua recém-vivida experiência em Pernambuco, para onde se mudara, passando a dedicar-se à pesquisa. No Carnaval, conheceu os autênticos executantes de frevo, maracatu, caboclinhos e bumba meu boi. No sertão descobriu o xangô, o catimbó, o coco, o pastoril, a zabumba, as excelências e benditos de reza de defunto, experiência que, somada aos pregões da capital, levaram-no a deixar provisoriamente a composição a fim de entender a grandeza da cultura regionalista. Releu Os Sertões de Euclides da Cunha e teve acesso ao Manifesto Regionalista de 1926 – lançado por intelectuais nordestinos encabeçados por Gilberto Freyre. A fusão entre textos como esses e o universo musical popular múltiplo do Nordeste levou Guerra-Peixe a sepultar definitivamente seu ímpeto dodecafônico – partilhado com H. J. Koellreutter e o movimento Música Viva na década de 1940 – e contribuiu para o florescimento de seu folclorismo, seguido de um nacionalismo convicto, radicalizado quando de sua transferência para São Paulo em 1953.
Sua “fase nacional” apresenta um compositor socialmente engajado que gravita em torno do ideário de Mário de Andrade. Arauto do Modernismo brasileiro, Mário propôs, no final dos anos 1920, que a maturação da cultura nacional compreendesse três fases: a da tese nacional, a do sentimento nacional e a da inconsciência nacional. Segundo Guerra-Peixe, o momento vivido pela cultura musical brasileira nos anos 1950 era justamente a primeira fase – a da tese nacional. O compositor defendia à época que a composição musical se inspirasse na fotografia, a fim de oferecer um registro artístico da musicalidade popular. No entanto, como dizia, “não se trata de fotografia como retratinho 3 x 4 destinado a documento pessoal; mas fotografia artística no sentido de que a fonte do material sonoro (isto é, aquilo que é focalizado) seja, em termos de arte, suficientemente reconhecível ou pressentido pelo ouvinte leigo em tais problemas. E isso é diferente de ‘copiar o folclore’, como às vezes ocorre dizerem por aí”.
Nos seus primeiros anos em São Paulo, Guerra-Peixe descobre toda a música folclórica do litoral. “Os contrastes entre a música paulista e a pernambucana são vistos a cores vivas: as semelhanças também”, declarou o compositor. Guardando suas experiências regionais, e com as ideias de Mário de Andrade, Euclides da Cunha e dos intelectuais pernambucanos como nítidas referências, retoma então o ofício composicional com intensidade. Opta por suítes e pelas formas menores, considerando que estas lhe permitiam demarcar com mais facilidade os elementos populares segundo suas fontes de origem. Em 1955 compõe suas duas suítes sinfônicas, a Paulista e a Pernambucana. A primeira destas foi estreada no dia 4 de julho de 1956 pela Orquestra Municipal de São Paulo, sob a regência do maestro Eduardo de Guarnieri, a quem a obra fora dedicada. O maestro Guarnieri foi o responsável por levar a Suíte Sinfônica Paulista ao público de Moscou e a outros centros da União Soviética, além de gravá-la pela RGE em 1957, com a Orquestra Estadual de Moscou. A suíte reúne quatro partes, utilizando, na terceira, tema recolhido pelo folclorista Rossini Tavares de Lima: 1. Cateretê (Allegretto – Moderato); 2. Jongo (Vivace); 3. Recomenda de almas (Andante solene); 4. Tambu (Andante – Presto).
O Ponteado, composição do mesmo ano, foi estreado pela Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro, regida por Bernardo Federowski. A reunião das duas obras num mesmo concerto foi promovida pela primeira vez por Edoardo de Guarnieri em sua turnê russa. A combinação “soa” perfeitamente como um retrato no qual figuram a cultura musical brasileira e a própria história de vida do compositor.
Igor Reyner
Pianista, Mestre em música pela UFMG, doutorando de Francês no King’s College London e colaborador do ARIAS/Sorbonne Nouvelle Paris 3.