Concerto em Fá

George GERSHWIN

(1925)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

Comparações são sempre temerárias, mas nunca deixam de ser interessantes. Se, despretensiosamente, fizéssemos um paralelo entre George Gershwin e Heitor Villa-Lobos, veríamos grandes coincidências. Villa-Lobos nasceu em 1887. Gershwin, 11 anos depois (1898). Embora Villa-Lobos tenha vivido bem mais tempo que Gershwin (que morreu aos 39 anos), ambos compartilharam um lapso de tempo em que produziram obras significativas de sua carreira: os Choros de Villa-Lobos, para dar um único exemplo, começaram a ser compostos em 1924, mesmo ano de composição da Rapsódia em Blue, de Gershwin. Certas melodias de Villa-Lobos há muito já se incorporaram ao cancioneiro e ao imaginário popular do Brasil. Da mesma forma, certas canções de Gershwin (que, por razões político-econômicas, têm um alcance mais abrangente) incorporaram-se à cultura popular não apenas estadunidense, mas universal. Como músico, Villa-Lobos transitava abertamente e sem qualquer cerimônia por entre os domínios da música dita popular, do folclore e da música dita erudita. Gershwin, da mesma forma, não hesitava em compor a música para peças musicais da Broadway. Villa-Lobos deve grande parte de seu idioma musical às tradições musicais afro-americanas. Gershwin tem, confessadamente, no jazz e no blues (cujas raízes também são afro-americanas), sua fonte primária. Quer se trate de coincidências, quer se trate de uma espécie de Zeitgeist que permeava ambientes culturais distanciados do polo europeu centralizador, consciente ou inconscientemente determinados a traçar a sua própria trilha e a declarar a sua independência cultural, é certo que, a partir dessa comparação poder-se-ia estabelecer uma curiosa razão aritmética: Villa-Lobos está para o Brasil assim como Gershwin está para os Estados Unidos.

 

O princípio do século XX se vê fascinado pelo jazz. O jovem Ravel, por exemplo, não esconde seu entusiasmo, traduzido depois na Sonata para violino, no Concerto em Sol para piano, em certas passagens de L’enfant et les sortilèges. No entanto, o movimento que Ravel realiza em relação ao jazz é vetorialmente contrário ao de Gershwin. Um enxerga no jazz um caminho possível para novas conquistas expressivas e para certo distanciamento do sistema tonal. O outro enxerga, justamente na música de concerto, um caminho possível para a legitimação social e cultural de uma linguagem musical até então segregada (por razões inclusive políticas) a um segundo plano da Cultura.

 

O Concerto em Fá foi composto em 1925, um ano depois da Rapsódia em Blue, obra icônica de Gershwin. Ambas as obras foram motivadas por uma mesma razão: Paul Whiteman, um importante maestro de bandas, incentivou Gershwin vivamente a trasladar seu trabalho de composição para o contexto sinfônico. Assim nasceu a Rapsódia em Blue. Depois de sua estreia, Walter Damrosch, diretor da Sociedade Sinfônica de Nova York (mais tarde, Orquestra Sinfônica de Nova York), encomendou-lhe um concerto “de fato”.

 

Embora Gershwin tenha tido a ajuda de Ferde Grofé na orquestração da Rapsódia, para o Concerto em Fá ele decidiu assumir sozinho a tarefa. O resultado foi mais que bem-sucedido, sem detrimento da linguagem jazzística que aí também se mantém. Mais do que isso, a orquestração, muitas vezes inusitada (note-se, por exemplo, o uso expressivo dos tímpanos e da percussão), revela um pensamento musical e sonoro livre de preconceitos e imbuído de certa ironia e de certa leveza, características do jazz e da música de cena norte-americana. No segundo movimento, por exemplo, Gershwin transporta para o contexto sinfônico certas sonoridades e certos aspectos de caráter improvisatório tão típicos do jazz e do blues, traduzidos em um solo de trompete. O último movimento recupera, como recurso de unidade, elementos dos movimentos anteriores, incluindo o trabalho com os tímpanos e a percussão. Estreado no ano de sua composição, no Carnegie Hall, sob a batuta de Damrosch, tendo como solista o próprio Gershwin, o Concerto em Fá gerou opiniões divergentes. A despeito disso, continua sendo uma obra de inquestionável importância, por transitar em uma região limítrofe entre a música dita erudita e a dita popular.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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