Heitor VILLA-LOBOS
Instrumentação: 2 piccolos, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, saxofone soprano, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 4 trompetes, 4 trombones, tuba, tímpanos, percussão, celesta, 2 harpas, cordas.
Na edição do Choros nº 3, publicada por Max Eschig em Paris, em 1928, Heitor Villa-Lobos acha por bem lançar um esclarecimento: “Choros representam uma nova forma de composição musical, na qual são sintetizadas as diferentes modalidades da música brasileira indígena e popular, tendo por elementos principais o ritmo e qualquer melodia típica de caráter popular que aparece vez por outra, acidentalmente, sempre transformada segundo a personalidade do autor. Os processos harmônicos são, igualmente, uma estilização completa do original”. Em texto posterior, Villa-Lobos acrescenta que os Choros são construídos “segundo uma forma técnica especial, baseada nas manifestações sonoras dos hábitos e dos costumes dos nativos brasileiros, assim como nas impressões psicológicas que trazem certos tipos populares, extremamente marcantes e originais”.
Tais comentários parecem dizer pouco sobre cada uma das dezesseis obras de que se constitui a série. No entanto, bastaria um breve, mas cuidadoso olhar sobre as palavras de Villa-Lobos para entender a postura que ele adota, ao mesmo tempo como artista criador e observador da música de sua terra. Da mesma forma que as Bachianas Brasileiras não tratam da recuperação ou do resgate da estética ou da linguagem de J. S. Bach, mas de uma ponte que Villa-Lobos procura construir entre a Tradição Ocidental e a música nacional brasileira, os Choros não tratam, de maneira nenhuma, de qualquer tipo de resgate ou sacralização erudita dessa importante manifestação – eminentemente urbana – da Música Popular Brasileira. Tampouco se pode dizer que, em sua série de Choros, Villa-Lobos procura fazer uma releitura, muito pessoal, do choro popular. O compositor é categórico: quaisquer elementos rítmicos, harmônicos ou melódicos nessa série de obras se fundamentam em sua origem popular, e aparecem, se não acidentalmente, completamente estilizados, transformados “segundo a personalidade do autor”. Este se impõe, portanto, às suas fontes, que tomam lugar apenas de motivação psicológica, quase alegórica, para um trabalho pessoal e original de inventividade criativa. A própria diversidade das instrumentações o atesta: do violão solo (Choros nº 1) à grande orquestra sinfônica (incrementada com uma prodigalidade no mínimo inusitada de instrumentos de percussão, alguns dos quais icônicos de nossa música popular ou de nosso folclore, como nos Choros nº 6, 8, 9 e 10); do piano solo (Choros nº 5) ao coro masculino acompanhado de um conjunto pouco ortodoxo de instrumentos de sopro (Choros nº 3); de um duo singelo de flauta e clarinete (Choros nº 2) a conjuntos de câmara jamais antes concebidos pelas instrumentações tradicionais (Choros nº 7).
De toda a série, talvez o mais aparentado com a sua fonte popular original seja o primeiro, dedicado a Ernesto Nazareth, ele próprio uma das fontes fundamentais para a constituição do choro popular. De fato, o trabalho formal, melódico, harmônico e mesmo a escolha tímbrica (o violão solo) o aproximam deveras da sonoridade inconfundível do Chorinho Carioca. No entanto, já no segundo dos Choros, Villa-Lobos leva a sua proposta de estilização ao grau exponencial que há de nortear a proposta integral da série. Nesse processo de estilização, no que diz respeito à Harmonia, não é raro Villa-Lobos afastar-se da tonalidade, sem, porém, abandoná-la de todo. Isso, e as novas investidas formais, conferem aos Choros um aspecto bem mais arrojado do que o das Bachianas Brasileiras, por exemplo, posto que tenham sido compostos antes delas, inserindo o compositor num contexto de diálogo constante com as então vanguardas europeias, com as quais travara contato direto em suas duas estadas em Paris, na década de 1920. A rítmica, entretanto, nos Choros, e certas construções melódicas guardam elementos tipicamente nacionais, como uma espécie de âncora que não deixa Villa-Lobos perder de vista suas fontes brasileiras, ainda que totalmente estilizadas.
Composto no Rio de Janeiro em 1926, e estreado também ali, sob a regência do compositor, em 1942, o Choros nº 6 não é, cronologicamente, a sexta obra da safra. Nos Choros, não é a cronologia, mas uma espécie de gradação de complexidade estrutural e instrumental que parece nortear a ordenação feita por Villa-Lobos. Segundo o testemunho do próprio compositor, “o clima, a cor, a temperatura, a luz, os pios dos pássaros, o perfume do capim melado entre as capoeiras e todos os elementos da natureza do sertão serviram de motivos de inspiração para esta obra que, no entanto, não representa nenhum aspecto objetivo nem tem sabor descritivo”.
Villa-Lobos, assim, mantém-se coerente com a sua proposta estética da máxima estilização: nesta obra, como nos demais Choros, mesmo o que parece ser citação de elementos da música tradicional ou da música popular brasileira não deixa de ser trabalho original de composição, a partir de um material filtrado, destilado e estilizado das fontes originais, nacionais ou europeias. A orquestração deste Choro, numerosa e exuberante, faz uso largo de instrumentos de percussão, inclusive daqueles que se identificam mais com a nossa música popular que com a orquestra sinfônica propriamente dita: a cuíca, o coco, o roncador, o reco-reco, o tamborim de samba. Por isso e também pelas combinações tímbricas vigorosamente originais é que Messiaen o considerava um dos maiores orquestradores do século XX.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Professor da Escola de Música da UEMG e da Fundação de Educação Artística.